CRÔNICA DO MEU DIA DA CRIANÇA – A BENGALA DO MEU AVÔ

A bengala do meu avô está aqui em casa. Tem mais de cento e vinte anos e, pela densidade e aspecto da madeira poderá durar centenas mais. Não poderia estar num lugar mais adequado, do meu ponto de vista.

Está pendurada no alto da biblioteca, rica e acalentada por meus sonhos cada vez que fui a uma livraria em busca de uma promessa de ler algo que abrisse em mim as portas da percepção por meio de novos conhecimentos e experiências manifestados em cada livro.

Investi uma fortuna em livros e jamais me arrependi e continuo nessa caminhada surpreendente e prazerosa a cada passo.

Queixo-me de não ter memória, mas isso não é um fato verdadeiro. Lembro-me vividamente sentado no colo do meu avô, afetivo e amoroso, me servindo a sopa de café com leite e pão na cozinha. Eu adorava meu vô. Me dava quinhentos réis para comprar um doce, desde que eu comesse toda a sopa [risos].

Era uma alegria correr para o armazém da esquina, onde adquiria maria-mole, doce na forma de triângulo de goiaba com açúcar cristal espetada num palito, paçoca, pé-de-moleque. Meu pai jamais deixou de fazer isso também. Tive sorte de ter boa mãe, bom pai, bom irmão, boa tia, bom avô. Boa família! Nosso quintal era um imenso pomar! Tudo isso constituiu em mim um senso de liberdade infinito e suspeito que isso me faz uma pessoa incomum, mas já me acostumei com essa ideia!

Quando ele morreu, houve um episódio igualmente inesquecível por parte de toda a família. Já idoso, com seus cabelos brancos e rosto calabrês, estava deitado na cama. Adormeceu por um certo tempo. Despertou e anunciou que havia estado no Céu. Fez uma descrição fabulosa de um lugar maravilhoso pleno de luz, cores, suavidade e paz!

Fico pensando que esse meu amado velhinho, a poucas horas de sua morte, quis tranquilizar a família, para que não sofresse sua ausência. Mas, para mim, isso não funcionou. Ele foi a primeira morte que vi. Doeu fundo! Na verdade, não tive coragem de vê-lo no caixão. Menino, reagi interiormente, sentindo sua partida, como uma criança sente. Mais tarde, muitas vezes em meio a lágrimas, escrevi mais de duzentas e cinquenta páginas para me despedir de Francisco, este era seu nome.

Teve a coragem de juntar a família, atravessar o Atlântico no fim do século XIX, desembarcar no porto de Santos e se tornar um colono e, mais tarde, um jardineiro, católico devoto. Um exemplo para mim de um ser humano simples, cumpridor de suas obrigações, responsável pela família.

Sua bengala já foi objeto de brincadeiras dos meus netos, de perguntas de quem era, fizeram pose usando algum chapéu e caminharam pela casa e varanda. Rodaram-na no ar, como se costuma fazer com bengalas nos filmes de Hollywood. Acho bela essa experiência. A mesma empunhadura tocada pelo meu avô passando de mão em mão dos seus descendentes!

Minha avó materna não conheci, mas tenho dela as melhores referências feitas pela minha mãe. Meu avô morreu há tanto tempo, mas sua bengala está aqui como prova de que viveu e, pelo que sei, com alegria, constituiu uma família de muitos filhos, como era comum na época.

Naqueles tempos ingênuos não se viam e tampouco se ouviam coisas que se veem e se ouvem hoje em dia. É, os tempos mudaram e continuam mudando e a história passa como os meteoros cruzam os céus, como um filme acelerado em que as pessoas mais parecem robôs. (Carlos Rossini)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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