INESQUECÍVEL – MEMÓRIAS DE UM MODO DE AMAR SUBLIME

Fazia tempo que não se viam. Foram colegas de faculdade e tinham afinidades a respeito de várias visões da existência. Comentavam um ao outro sobre os livros que liam e revelavam percepções da mulher e do homem diferentes e complementares.

Isso nutria um seguro senso mútuo de amizade que, não raro, resvalava para sentimentos de simpatia confidente e, às vezes, para atos sublimes de amor consagrados por abraços que faziam os corações se sentirem colados, tão próximos ficavam um do outro, e beijos de ternura.

Assim era essa amizade surgida na escola, no momento em que Carlos, um rapaz de estatura média, cabelos pretos finos e lisos, olhos castanhos, tinha na alma uma queda pelo romantismo e paixão pela beleza poética que têm o semblante da mulher, cujos olhos são brilhantes como a luz das estrelas.

Camila, cabelos louros como fios de ouro e um par de olhos verdes, era calorosa e vibrante quando explicava a compreensão que tivera de um livro ou outro. Parecia enxergar o que o futuro prometia, principalmente pelo conhecimento que adquiríamos em obras nem sempre fáceis de ler e, portando, provocantes.

Formávamos um grupo de estudos, íamos uns nas casas dos outros, e esses eram momentos em que parecíamos todos irmãos. Sem nenhum combinado, praticávamos as lições da mais nobre democracia. Ouvíamos e aprendíamos uns com os outros com atenção, respeito e de forma sempre divertida.

Éramos felizes e gostávamos de trabalhar juntos como estudantes e ninguém fingia saber o que não sabia. Éramos honestos e humildes. Sabíamos claramente o que estávamos fazendo em nosso papel de aprendizes.

Quando nos deparávamos com algo mais complexo teoricamente, nos campos da sociologia, da filosofia ou da psicologia, nos comprometíamos fazer pesquisa mais avançada e, eventualmente, recorríamos aos professores titulares das disciplinas, todos competentes e responsáveis. A maioria com títulos de doutores e autores de livros.

Depois de reunidos durante horas, com intervalo para o café, nos despedíamos e cada um tomava o rumo de suas casas. Nos formamos em 1976 e daí em diante desaparecemos como as nuvens sopradas pelo vento. O tempo flui sem ser percebido.

Como hoje o dia está nublado e chuvoso, coloquei em ordem alguns livros na biblioteca e, ao movimentá-los, encontrei um que procurava para releitura. Trata-se de A Soberania do Bem, obra da filósofa irlandesa Iris Murdoch (1919-1999), autora de mais de vinte romances, cinco livros de ensaios filosóficos e de poesia, que lhe deram vários prêmios. Olhos penetrantes, rosto revelador de personalidade marcante, Murdoch sucumbiu ao mal de Alzheimer, doença progressiva que compromete a memória e outras funções mentais.

Ao tomar o livro nas mãos e iniciar a releitura comecei a ter lembranças em série do passado, na medida em que lágrimas começavam a brotar nos meus olhos. Me vi por dentro e tomei algumas decisões no sentido de prosseguir na minha maior jornada na aventura das descobertas.

Assim que a vi na Avenida Paulista tive um pouco de dúvida se se tratava mesmo dela. Sim, era Camila! Aproximei-me e nos olhamos hipnotizados. Você?! Sim. Éramos nós, frente a frente, depois que a terra dera muitas voltas em torno do Sol e a Lua ao redor da Terra.

Nos abraçamos intensamente e nos beijamos, como nos tempos idos. (C.R.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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