ESTÁTUA NA PRAÇA DA MATRIZ DE IBIÚNA FAZ INSÓLITO DESABAFO

busto na matrizMinha mulher e eu fomos comer um pastel no Seo Rock, na praça Marechal Deodoro, também conhecida como praça da Matriz, no coração da cidade de Ibiúna. Por volta das oito da noite, já havíamos deixado a lanchonete e atravessávamos um trecho do que antigamente se poderia dizer logradouro público, mas hoje está fora de moda, quando fui surpreendido por um “psiu!”. Olhei ao redor, mas como não visse ninguém, ia seguir adiante quando, novamente, veio aquele “psiu!”. Fiquei intrigado e estava bem perto de um busto de bronze de uma figura masculina, com seu paletó e gravata nos trinques. “Sou eu mesmo que estou falando”, disse o personagem, para minha surpresa e espanto.

“Quero falar com o senhor, preciso fazer um desabafo. Já estou aqui, quieto e calado, há anos e já não aguento mais a falta de consideração para comigo”, resmungou em voz baixa a estátua feita por algum escultor desconhecido. Tive que levar a coisa a sério ou teria que me considerar em grave estado demencial [minha mulher já havia se afastado e se encontrava distante para ouvir aquilo].

Não estava na posição que supostamente tenha sido posto e descoberto com pompa e circunstâncias, talvez com banda de música, aplauso e discursos solenes. Lembrei-me que, não faz muito tempo, ele estava virado em outra posição e que havia uma inscrição igualmente de bronze no alto do pedestal. Desta vez estava virado para a quina, de forma desajeitada e com notória falta de respeito com a representação artística de um munícipe ilustre ou de algum forâneo certamente merecedor da homenagem post-mortem.

Como se notava já não havia identificação ali e talvez não tenham levado o próprio busto por ser pesado ou falta de oportunidade para algum vândalo. Não tive coragem de lhe perguntar quem era. Parecia-me até mesmo indelicadeza de minha parte.

“Você vê eu ainda estou aqui, com o rosto raspado, ferido, solitário, mas olhe ali [havia outro pedestal bem próximo, mas sem nenhuma estátua sobreposta e tampouco placa de identificação de outro personagem, este desaparecido]. “Só fiquei sabendo desse outro caso porque um dia me viraram e pude ver o estrago feito, porque antes estava de costa para esse colega vítima como eu do desprezo e da falta de bons modos de pessoas sem um pingo de educação. No meu tempo, coisas assim não aconteciam aqui.”

Na verdade quem me visse ali observando e “conversando” com um busto certamente pensaria “mais um louco no pedaço”, mas não liguei para essa possibilidade, porque estou acostumado com coisas estranhas, que é o que mais acontece em nossa cidade. E, por isso mesmo, perguntei se poderia fazer alguma coisa para aquela figura cujo lamento era dolorido. “Quer que eu informe o prefeito, os vereadores, a polícia, o Departamento de Cultura da cidade?”, indaguei. Ele foi categórico: “Deixa pra lá, já estou me acostumando a essa situação e, pelo jeito, logo serei levado daqui, transformado em alguns cobres para alguém e derretido em alguma fundição de fundo de quintal”, respondeu de forma comovente.

Sem jeito, prometi fazer alguma coisa, no mínimo descobrir nos arquivos públicos sua identidade, assim como do seu colega desaparecido e, talvez, pedir que alguma coisa fosse feita, afinal ninguém gosta de ser maltratado, rejeitado e ficar esquecido, principalmente na praça mais importante da cidade, que deveria ser cuidada e preservada com todo o carinho para receber os turistas e a população descansar, descontrair e bater papo com os amigos, jogar conversa fora. E desconfiei que era exatamente isso que mais magoava esse ser metálico à minha frente: tinha saudade dos amigos e dos bons tempos, em que as coisas, assim como as pessoas, eram tratadas com respeito. (C.J.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.