PERSONA – DE UMA FAMÍLIA SIMPLES EM IBIÚNA AO DOUTORADO NOS ESTADOS UNIDOS
“Eu venho de uma família simples, sou a primeira de ambos os lados do meu pai e da minha mãe a passar numa universidade pública, fazer mestrado e doutorado.”
Essa frase sintetiza a exemplar história de vida de Aline de Camargo Santos, 30. Ela nasceu em São Roque em abril de 1992, mas cresceu em Ibiúna, onde morou até “meus 19 anos”.
Atualmente, ela faz Doutorado em Fisiologia de Plantas no laboratório de Ecofisiologia Vegetal na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, que concluirá em agosto deste ano. Realizou uma pesquisa que resultou na melhora da recomendação de nutrientes que reduziu os custos de produção por usar fertilizantes mais eficientemente no plantio de cana-de-açúcar no Sul da Flórida.
“Mantenho um carinho muito grande por Ibiúna”, mas talvez somente volte para o Brasil depois de se aposentar.
Filha única do casal Rosana Aparecida de Camargo Santos e de Juraci Ribeiro dos Santos faz uma jornada acadêmica brilhante, como se verá a seguir, mantém viva uma frase dita por sua avó, que calou profundamente em sua memória.
Vitrine Online – Fale do seu estudo…
Aline Camargo Santos – Em Ibiúna, eu estudei nas escolas municipais “Hora Alegre” e “Padre Elídio Mantovani” durante a pré-escola e o ensino fundamental. Depois fui para a escola estadual “Professora Laurinda Vieira Pinto” para o ensino fundamental 2 e o ensino médio. Tenho orgulho de dizer que sempre estudei em escolas públicas, mas confesso que por mais que eu fosse uma aluna dedicada, saí do ensino médio como muitos outros estudantes sem o conhecimento necessário para passar em uma universidade pública. Tive que estudar muito durante os anos seguintes nos quais eu fazia um curso técnico no Instituto Federal de São Roque no período noturno, enquanto trabalhava durante o dia e estudava no Cursinho da Poli nos finais de semana. Com muito esforço e em média 8-10 horas de estudo diário por 8 meses eu passei na Universidade de São Paulo, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, na qual eu me formei em Engenharia Agronômica.
VO – Conte como foi sua jornada até chegar a um PhD nos Estados Unidos?
ACS – Foi uma jornada muito intensa e nada fácil. Minha avó, a Dona Dita, costumava olhar para as paredes de casa e dizer “essa casa foi construída com o nosso suor, sangue e lágrimas, se você olhar bem de perto você consegue enxergar escorrendo pelas paredes”. Essa frase eu levo comigo com a minha carreira, pra chegar onde eu estou foi muito suor, sangue e lágrimas. Eu venho de uma família simples, sou a primeira de ambos os lados do meu pai e da minha mãe a passar numa universidade pública, fazer mestrado e doutorado. Meus avós paternos eram pequenos agricultores rurais em Ibiúna, mas tiveram que mudar para cidade pra conseguir algo melhor, já que a produção rural não estava trazendo o pão de cada dia. Isso me entristeceu, mas também me deixou curiosa. Como algo tão importante quanto a produção de alimentos tinha que ser tão desafiador? Foi assim que decidi estudar agronomia.

Eu sabia desde pequena que queria algo mais da minha vida e que não queria depender de um relacionamento/parceiro para conseguir o que eu quero. E isso ficou mais evidente quando passei no Instituto Federal e comecei a interagir mais com outras pessoas em condições parecidas com a minha que chegaram onde eu queria chegar. Desde então, apostei mais no meu potencial e tenho trabalhado intensamente para conquistar os meus sonhos.
VO – Como vê o papel de sua família em sua trajetória?
ACS – Por mais difícil que tem sido essa jornada, tenho que dizer que nada seria possível sem o apoio dos meus pais e da minha avó, desde o começo dessa história. Eu tenho a sorte de ter eles do meu lado quando decidi sair do meu emprego de auxiliar de dentista aí na cidade para estudar para passar na USP. Meu pai desde pequena colocava livros na minha cabeceira para eu ler e expandir os meus horizontes, e eu os devorava e pedia por mais. E minha mãe sempre me falou que nós somos feitas de ferro, e sempre me passou essa força de que tudo é possível se você colocar foco e esforço, e por isso devemos sempre continuar seguindo.
VO – De qualquer forma foi uma superação e tanto, né?
ACS – Na minha opinião, passar na USP foi meu maior desafio. Digo isso porque exigiu muita dedicação em um tempo limitadíssimo. Depois de quatro meses que tinha deixado meu emprego e estava focando nos estudos minha mãe me falou: “Olha eu não quero te apressar, mas a gente consegue te apoiar mais alguns meses, se você não passar nessa vez você tem que voltar a trabalhar em algum lugar na cidade, Aline”, e essa foi minha maior motivação para seguir em frente – eu não tinha a escolha de não passar. Naquele tempo eu apliquei para todas as universidades públicas, USP, Unesp, Unicamp, federais e para cotas para alunos que cursaram escola pública a vida toda para ter certeza de que ia dar certo. No final eu passei em todas as universidades em que eu prestei e nem precisei da cota porque passei em 31° de 200 candidatos aceitos anualmente no curso de Engenharia Agronômica pela USP, a que acabei escolhendo pelo reconhecimento do curso.
VO – Você teve que desbravar um caminho…
ACS – Uma vez que eu estava na USP as oportunidades de estágio e programas de intercâmbio se abriram e tudo começou a fazer ainda mais sentido para mim. Durante minha graduação, que foi de 2012 a 2016, sempre trabalhei em estágios para ajudar com as contas mensais, já que tive que mudar para Piracicaba e os nossos gastos aumentaram consideravelmente. Eu também fazia algumas tarefas na casa da minha avó e ela também me ajudou financeiramente. Foi difícil pra gente fechar todas as contas do mês naquele período, mas trabalhando como um time, passamos pelo que tinha que passar e hoje vemos que valeu a pena.

VO – Você fez descobertas importantes.
ACS – Na Esalq, eu trabalhei em diversos projetos fundados pelo CNPq e Fapesp nos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Bahia e Mato Grosso com manejo nutricional de solos ácidos e naturalmente inférteis, tema relevante em várias partes do Brasil e do mundo. Eu trabalhei com as culturas da cana-de-açúcar, algodão e soja. Ali eu comecei a ver como a pesquisa é importante pra ajudar o produtor rural, e talvez se meus avós e outros pequenos produtores tivessem acesso ao trabalho científico desenvolvido em universidades, talvez eles teriam tido mais sucesso com a produção rural.
Trabalhar em diversas partes do Brasil abriu as portas para o meu próximo objetivo que era estudar fora do país. Nos próximos anos eu me dediquei a estudar inglês e apliquei para um programa de intercâmbio para trabalhar com manejo nutricional de cana-de-açúcar produzida na Flórida. Dentre 3 alunos competindo por 1 vaga, eu fui selecionada para trabalhar na Universidade da Flórida e na US Sugar Corporation.
VO – Foi aí que você tomou uma importante decisão?
ACS – Nesse intercâmbio eu trabalhei diretamente com produtores, agrônomos da indústria e pesquisadores da universidade uma vez mais conduzindo experimentos para melhorar o manejo nutricional de plantas com o objetivo de tornar o processo produtivo mais sustentável. Nesse momento eu decidi de vez que a carreira que eu aspiro é como pesquisadora, conduzindo projetos de pesquisa que tem o potencial de ajudar o produtor rural e aumentar a eficiência da produção agrícola.
Nos dias de hoje, para ser uma pesquisadora ter um mestrado e um doutorado é um requisito mínimo. Então uma vez mais me dediquei para trabalhar no intercâmbio durante o dia e estudar à noite para aplicar para o programa de mestrado em Agronomia pela Universidade da Flórida. Com muito esforço e disciplina passei nas provas necessárias para ser admitida e consegui uma bolsa de estudos para o mestrado fundado pela associação de produtores que eu trabalhei durante o intercâmbio. Embora o projeto de mestrado exigisse muita dedicação, condições de campo desafiadoras e intenso trabalho de laboratório, os resultados de nossa pesquisa melhoraram as recomendações do fertilizante para os produtores de cana-de-açúcar do Sul da Flórida, tornando o processo mais eficiente e resultando em menos gastos para o produtor.

VO – Esse fato merece uma comemoração… imagino como se sentiu.
ACS – Ver o impacto da minha pesquisa só tem alimentado a minha motivação para continuar seguindo, e a próxima fase foi de continuar meus estudos e aplicar para um projeto de doutorado com uma professora com a qual eu trabalhei durante o mestrado. Tudo isso me trouxe aqui, como estudante de terceiro ano do doutorado trabalhando no desenvolvimento de estratégias para melhorar a resiliência das culturas ao estresse hídrico, na fase final do projeto e com graduação esperada para julho de 2023.
VO – Que curso está fazendo?
ACS – Doutorado em Fisiologia de Plantas no laboratório de Ecofisiologia Vegetal na Universidade da Flórida. Eu trabalho com a cultura do amendoim e estamos testando estratégias para melhorar a aclimatação das plantas ao estresse hídrico, um grande problema no mundo inteiro, cada vez mais vemos aumento da incidência de secas e redução de água disponível para a agricultura. Estamos trabalhando na fisiologia da planta para melhorar os mecanismos de defesa contra estresse hídrico e torná-las mais resistentes e tolerantes ao estresse. Com mudança climática, área para a produção agrícola e disponibilidade de água diminuindo ao passo que a população está crescendo exponencialmente, o objetivo da minha pesquisa é produzir mais com menos, no caso utilizando menos recursos, mas aumentando a produtividade e a produção de alimentos por área. O projeto que estou trabalhando agora é uma tentativa de preparar as plantas para o estresse hídrico antes do estresse acontecer. Uma possível analogia seria como se a gente estivesse aplicando uma vacina nas plantas, no caso aplicamos pequenas doses de estresse hídrico (como nas vacinas que contém pequenas doses do vírus, aqui aplicamos pequenas doses de estresse imitando uma seca) no começo da safra para preparar as plantas para o resto da safra. Essa estratégia tem mostrado potencial de reduzir a quantidade de irrigação ao passo que aumenta a tolerância ao estresse. Ainda tem muito que ser estudado, mas acreditamos que teremos resultados bem interessantes.
VO – Qual o nome e a localização de sua universidade?
ACS – Universidade da Flórida, localizada em Homestead – sul da Flórida.
VO – Que lembranças você tem de Ibiúna em sua infância e adolescência?
ACS – Durante a minha infância, minha avó costumava levar eu e um de meus primos para passar parte das férias da escola no sítio de alguns familiares na Vargem do Salto, onde nossas maiores diversões eram caçar vagalumes, subir em árvores para colher frutas, andar de bicicleta, ou ir às cachoeiras e na represa da cidade.
Eu também tenho lembranças boas brincando com as crianças da vizinhança na nossa casa. Como eu morei a maior parte da minha infância e adolescência no centro (na frente da Cetril) minha casa era o ponto de encontro depois da escola, de onde íamos para a praça tomar um sorvete, ou no centro tomar um milkshake.
Ibiúna por ser uma cidade pequena não tem muita festa pra ir, mas ainda tenho memórias ótimas das festas do aniversário da cidade ou das festas de maio, não perdia uma!
Eu não falei antes muito do meu avô, conhecido na cidade como Gumercindo Gaiola, porque ele faleceu já tem um tempo, mas tenho memórias muito felizes dele indo me buscar na escola na garupa de sua bicicleta, ou quando ele tinha um sítio na Vargem do Salto e eu o visitava quase todos os fins de semana. O vô tinha um galo que cantava quando ele batia palma, e sempre me dava ovos e verduras frescos para trazer de volta pra cidade.
VO – Há quanto tempo está fora do País?
ACS – Desde 2016.
VO – Tem colega e amigos de Ibiúna ou do Brasil na sua escola atual?
ACS – Eu tenho muitos amigos do Brasil aqui na Flórida. Conheço gente de São Paulo e região, Piracicaba, Botucatu, tenho amigos de Minas Gerais, Rio de Janeiro, e de várias partes do Nordeste, mas de Ibiúna ainda não encontrei infelizmente.
VO – O que você diria para seus conterrâneos sobre fazer estudo fora do Brasil?
ACS – Então, a adaptação é um processo diferente para cada um, mas para mim foi um pouco complicado em questão da comida que pode ser muito diferente, costumes, se acostumar com a língua e outras culturas. Tem que ter a cabeça aberta e de começo tem que se esforçar bastante para aprender o máximo possível e melhorar a pronúncia das palavras e aumentar o vocabulário. No começo é difícil entender outras culturas ou mesmo se comunicar claramente porque as regras linguísticas são bem diferentes, mas com prática se acostuma e hoje em dia depois de seis anos aqui nem sinto a diferença entre falar em português ou inglês.
VO – Às vezes bate uma saudade, né?
ACS – Uma vez que a língua está sendo praticada com os nativos, é bom também manter uma rede de amigas/amigos brasileiros ou pelo menos encontrar as comunidades latinas quando se está fora do país para não sofrer tanto com a saudade. É difícil achar um povo com a energia do brasileiro, e ter amigos para dividir experiências, falar das comidas que sente falta, ou mesmo só para falar português de vez em quando é essencial. Eu tenho sorte de morar na Flórida, lugar onde se têm muitos brasileiros, e até temos um Festival Brasileiro todo outubro, sempre vou para ver bandas e comer comidas brasileiras e falar português com o pessoal.
VO – Quando terminar o curso voltará para o Brasil?
ACS – Por enquanto não tenho planos de voltar para o Brasil, talvez quando eu aposentar. Claro todo ano eu volto para cá para passar um mês, mas acredito que tenho mais opções para o tipo de carreira à que eu aspiro aqui nos Estados Unidos, ou mesmo em alguma universidade na Europa. O meu plano é tentar trabalhar em colaboração com professores na minha gloriosa Esalq assim que eu terminar o doutorado e conseguir um emprego como pesquisadora aqui, pra manter a conexão com o Brasil. Também penso no futuro em criar um instituto sem fins lucrativos para ajudar jovens com a mesma paixão que eu tenho por conhecimento de ter a chance a melhores oportunidades e estudo de qualidade no Brasil, mas por enquanto esse projeto é só uma ideia que precisa ser trabalhada nos próximos anos.
VO – Como tem sido suas relações com os familiares que aqui estão?
ACS – Eu me comunico quase que todos os dias com meus pais e com alguns bons amigos que deixei em Ibiúna e região. Depois de todo esforço que meus pais me dedicaram, agora sempre no que posso eu tento retornar a eles. Já vejo retorno de todo esse esforço quando pude trazê-los para Flórida na minha graduação do mestrado e pudemos passear bastante por Orlando, Miami e em Gainesville, na cidade da universidade, e vou trazê-los novamente ano que vem para a graduação do doutorado quando vamos conhecer novos lugares, quem sabe até Nova York.
VO – Quando enviamos o texto para revisão final, Aline nos deu a seguinte informação: ela conheceu um novaiorquino que viveu na Flórida “a vida toda”. Ambos ficaram noivos no Brasil [em Ibiúna], estão juntos há quatro anos, e se casarão aqui. “Uni minha carreira e família.”
