‘VIVEMOS EM UMA SOCIEDADE ‘LÍQUIDA’ EM QUE TUDO É FLUTUANTE’, ADVERTE HOMILIA DA SEXTA-FEIRA SANTA

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“Vivemos…em uma sociedade ‘líquida’; não existem mais pontos fixos, valores incontestáveis, nenhuma rocha no mar, à qual possamos nos agarrar, ou contra a qual colidir. Tudo é flutuante.” Estas palavras compõem relevante reflexão sobre a realidade nos dias atuais e integram a homilia apresentada pelo pregador da Casa Pontifícia, frei Raniero Cantalamessa, na cerimônia desta Sexta-feira Santa (14) na Basílica de São Pedro, presidida pelo papa Francisco. Trata-se de um alerta ao mundo em relação à qual o religioso exalta a cruz “como única esperança do mundo”. Eis um trecho da homilia:

“…enquanto o mundo dá a sua órbita, a história humana conhece muitas passagens de uma época para outra: se fala da idade da pedra, do bronze, do ferro, da era Imperial, da era atômica, da era eletrônica. Mas hoje há algo de novo. A ideia de transição já não é suficiente para descrever a realidade atual. A ideia de mutação deve ser combinada com a de fragmentação. Vivemos, alguém escreveu, em uma sociedade ‘líquida’; não existem mais pontos fixos, valores incontestáveis, nenhuma rocha no mar, à qual possamos nos agarrar, ou contra a qual colidir. Tudo é flutuante.

Realizou-se o pior cenário que o filósofo havia previsto como resultado da morte de Deus, que o advento do super-homem deveria ter impedido, mas que não impediu: “Que fizemos quando desprendemos esta terra da corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estamos incessantemente caindo? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima e um abaixo? Não estaremos errando como num nada infinito?” (F. Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 125).

Foi dito que “matar Deus é o suicídio mais horrendo”, e é isso que estamos vendo em parte. Não é verdade que “onde Deus nasce, o homem morre” (J.-P Sartre); o oposto é verdadeiro: onde morre Deus, morre o homem.

Um pintor surrealista da segunda metade do século passado (Salvador Dalì) pintou um crucifixo que parece uma profecia desta situação. Uma imensa cruz, cósmica, com um Cristo acima, também monumental, visto do alto, com a cabeça inclinada para baixo. Abaixo dele, no entanto, não há nenhuma terra firme, mas a água. O Crucifixo não está suspenso entre o céu e a terra, mas entre o céu e o componente líquido do mundo.

Este quadro trágico (há também, no fundo, uma nuvem que poderia aludir à nuvem atômica), contém, no entanto, uma consoladora certeza: há esperança também para uma sociedade líquida como a nossa! Há esperança, porque acima dela “está a cruz de Cristo”. É o que a liturgia da Sexta-feira Santa nos faz repetir todos os anos com as palavras do poeta Venanzio Fortunato: “O crux, ave spe unica”, Salve, ó Cruz, única esperança do mundo.

Sim, Deus está morto, morreu em seu Filho Jesus Cristo; mas não ficou no sepulcro, ressuscitou. “Vós o crucificastes – grita Pedro à multidão no dia de Pentecostes –, mas Deus o ressuscitou!” (At 2, 23-24). Ele é aquele que “estava morto, mas agora vive pelos séculos dos séculos” (Ap 1, 18). A cruz não ‘está’ imóvel no meio das turbulências do mundo” como um lembrete de um evento passado, ou um puro símbolo; está como uma realidade em ato, viva e operante.”

 

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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