BREVE ENSAIO – A VELHA E BOA SABEDORIA DO “QUEM CANTA, SEUS MALES ESPANTA”

Agora são vinte e duas horas e nove minutos do dia 15 de setembro de 2017. Estou ao lado do abajur de vidro verde. Gosto dele! Tenho em mãos o desafio: novecentas e sessenta e seis página sobre a paideia, o sistema de educação e formação ética do homem na Grécia Antiga. Na verdade, já iniciei essa leitura algumas vezes. Eu o adquiri no dia 28 de agosto de 1989, ou seja há vinte e oito anos. Há livros comigo bem mais antigos, são milhares distribuídos em camadas duplas na prateleira e em armários. Os livros sempre nos ensinam!

Mas, estava compulsando esse volumoso exemplar, pesado para segurar nas mãos por muito tempo, quando o cricrilar de um grilo do lado de fora de casa e perto da janela do quarto chegou aos meus ouvidos. Meus pensamentos se dividiram entre o livro e o grilo.

Existem mais de novecentas espécies de grilo. Eles tendem a ser noturnos e são frequentemente confundidos com gafanhotos porque possuem uma estrutura corporal semelhante, e até o mesmo modo de saltar impulsionando as patas traseiras. Grilos são inofensivos aos seres humanos.

Então meus sentidos visual e auditivo ficaram oscilando entre um e outro objeto, um vivo, orgânico, real; outro inerte, mas com o rosto de um homem grego me olhando diretamente nos olhos, como a dizer: “Vai encarar?”. Traduzindo: “Vai aceitar o convite para conhecer as origens da cultura ocidental?” Claro, isso é leitura para mais de metro, exige tempo e paciência e, de vez em quando, colírio estéril para umidificar os olhos. O ar está muito seco.

Reponho o livro sobre o criado mudo e fico ouvindo o grilo. Seu ruído é continuado. De vez em quando altera o ritmo, como uma escola de samba, dá uma paradinha e prossegue. Talvez prossiga seu canto a noite toda, bem longe do agitado Rock in Rio. Percebo que esse animalzinho real integra a imensa comunidade natural e é meu vizinho. Mora ao lado da minha casa. Está no gramado bem próximo da janela.

Está ali e agora parece um serrote rápido, agora reduzido, parou. Voltou. Está lá fora.

Olho o livro e já sei que será uma leitura lenta, como um alimento que demora para ficar pronto e não serve para pessoas apressadas. Exige uma atenção humilde e disciplinada e, provavelmente, bastante anotações para ajudar a memória, pois a leitura automática, rápida e superficial é como comer uma sopa de vento, passa e não deixa marcas na alma.

O gregos legaram para o mundo ocidental os fundamentos culturais que se desmembram sem parar nas disciplinas humanas e científicas, nos modos de pensar, sentir, compreender, aprender, evoluir, crescer, superar e, sobretudo, filosofar, que significa ser amigo da sabedoria. Nos ajuda a prestar atenção e até mesmo ouvir o canto noturno de um grilo.

Por último, mas não menos importante, é legal lembrar a expressão já muito usada pelas pessoas, talvez um pouco fora de moda hoje. Quando dizem “vou resolver” ou “resolvi meus grilos” significa que solucionaram um problema, um ruído que estava incomodando. Uma pessoa que tem muitos grilos na cabeça precisa se cuidar, cantar até que os grilos saiam. Soltar, jogar para fora os problemas, vomitar as coisas indigestas. É engraçado pensar: será que o grilo pensa quando está cricrilando?  (C.R.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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