ENSAIO – O HOMEM NU [INTERPRETANDO A BESTA], A CRIANÇA E A HISTERIA SOCIAL

Na última terça-feira (26) havia um homem nu deitado em uma das salas do Museu de Arte Moderna – MAM, interpretando “La Bête”, inspirado na criação de Lygia Clark [pseudônimo da mineira Lygia Pimentel Lins, pintora e escultora falecida em 1988]. O homem nu era Wagner Schwartz, que atua como coreógrafo há vinte anos.

Em apresentação única, ele participava do 35º Panorama de Arte Brasileira, uma exposição tradicional e bienal promovida pelo museu que trata da arte do país e propõe reflexão sobre a identidade brasileira.

Pois bem. Se uma criança acompanhada de sua mãe, a também coreógrafa Elizabeth Finger, não tivesse entrado na sala, e, como sua mãe, tocado os pés do artista nu e se alguém não tivesse filmado essa cena e postado no Facebook, a cena estaria abismada no mais proverbial anonimato.

A imagem viralizou nas redes sociais e provocou uma reação em cadeia numa velocidade tão espantosa quanto “histérica”, como apontou uma autoridade judicial. Um tsunami de ataques se espalhou revelando as entranhas da cultura, do ódio e rancor gerado, com razão, pelas brutais ações praticadas por pedófilos pelo Brasil afora. Todos tememos as ações covardes que, impiedosamente, vitimam até a morte muitas crianças. Pedófilos são criminosos incuráveis, como já reiterou com sua larga experiência o psiquiatra forense Guido Palombo. É natural, portanto, que haja uma reação tão intensa diante da cena exposta. Mas, a questão em si não está ali [não haveria nenhum crime a ser cometido, pois tratava-se de uma cena artística com muitas pessoas ao redor, e sim no pavor em que vive uma sociedade doente e insegura.

Uma síntese do conjunto das manifestações, tanto populares quanto de autoridades e especialistas em direito, indica que a criança deveria ser poupada de participar daquela cena e que a proteção da criança faz parte do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, mas também do bom senso por parte dos adultos “normais” que devem saber que as crianças precisam mesmo ser protegidas de um mundo onde há muitas “bestas feras” soltas, toda sorte de psicopatas-bichos.

O CHOQUE DA CENA E AS REAÇÕES

Na sexta-feira (29), um grupo de manifestantes se postou em frente da entrada do MAM gritando e agitando cartazes com dizeres como “pedofilia é crime”, “contra a pedofilia” e a “erotização infantil”. A Guarda Civil Metropolitana e a segurança do museu foram acionadas.

As reações à cena exposta nas redes sociais variaram da explosão verbal à razão profissional de pelos menos duas autoridades judiciárias.

O Movimento Brasil Livre postou um vídeo em que qualifica a apresentação como “repugnante”, “inaceitável”, “crime”. O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) chamou de “canalhas” os implicados na cena e considerou aquela atividade como “pedófila”. O deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) considerou a cena “revoltante” e “desagregadora da família”.

O juiz da Infância e da Juventude Jaime Medeiros, embora ressalvando não ter acompanhado o caso, afirmou que seria “adequado se houvesse restrição de idade à apresentação por conta do seu conteúdo”. E prosseguiu: “Sou defensor da liberdade artística e de expressão, mas vejo que foi a falta de cautela que gerou a polêmica”. Medeiros não considerou tipificar a conduta do artista como crime, “mas a criança tem que ser protegida integralmente”.

Por seu turno, o desembargador Antonio Carlos Malheiros, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, disse que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA orienta os espaços a indicarem a restrição de idade sobre o conteúdo exibido. “Chamar qualquer episódio mais insinuante de ‘pedofilia’ virou uma histeria coletiva. Isso precisa ser afastado. Agora, a criança, de fato, não poderia estar presente. Não considero pedofilia, mas é uma ação absolutamente inconveniente para uma criança. Ou seja: esse artista e a própria mãe da criança que estava com ela podem ser advertidos. Mas não vamos chegar ao exagero de achar que dera um comando pedófilo”, explicou o desembargador.

Acrescentou ainda que “o ECA tem medidas protetivas às crianças, que não permitem que as crianças estejam em determinados locais onde determinadas cenas podem eventualmente chocá-las. E a cena pode, sim, vir a chocar uma criança. Nesse aspecto, o ocorrido foi absolutamente inadequado”.

NOTA DO MAM

Em nota, o Museu de Arte Moderna – MAM esclareceu que houve uma única apresentação e que a sala estava “devidamente sinalizada sobre o teor da apresentação, incluindo a nudez artística, segundo o procedimento regularmente adotado pela instituição de informar os visitantes quanto a temas sensíveis”.

O MAM diz ainda que “o trabalho apresentado na ocasião não tem conteúdo erótico e trata-se de uma leitura interpretativa da obra “Bicho”, de Lygia Clark, historicamente reconhecida pelos suas propostas artísticas interativas”.

“O Museu lamenta as interpretações açodadas e manifestações de ódio e de intimidação à liberdade de expressão que rapidamente se espalhou pelas redes sociais.”

“O MAM acredita no diálogo e no debate plural como modo de convivência no ambiente democrático, desde que pautado pela racionalidade e a correta interpretação dos fatos.” (Carlos Rossini)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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