Crônica – A mulher que roubava livros

Havia uma mulher que roubava livros…dos homens. Era elegante, bem-vestida, inteligente e culta, seduzia bibliófilos (amantes de livros). Dizia-se que lia para viver e para sentir amor pelos outros, que sem livros pereceria oca como bambu; que sua alma se inquietava e se enchia de desejos camicases, sem esses objetos constituídos por folhas de papel que segurava nas mãos como preciosidades. Curioso! Era o mesmo que diziam os homens que frequentavam a Livraria Seridó na galeria no Edifício Copan, no centro de São Paulo, com a simpatia do seu Pereira, o livreiro.

Todos os dias ali se encontravam, informalmente, intelectuais conhecidos, doutores da USP, escritores, artistas, poetas. Tinha o Plínio Marcos, que aparecia vendendo seus livros e, depois, só com um condão mágico; o Tinhorão, duro feito pedra na crítica musical. Havia um delegado da Polícia Federal que simplesmente me disse: “Se não houvesse livros, eu morreria.”

Como trabalhava ali perto, minha hora de almoço era passada no encantador ambiente de sonhadores da Seridó. Confesso ter gasto ali boa parte do meu salário mensal. Demorei a me descobrir bibliófilo, diria mesmo biblioadicto, em estado bem avançado. Mais tarde, com o fechamento da livraria, passei a frequentar outra na Rua Simão Álvares, do seu Paulo, a Arjuna, no Bairro de Pinheiros, que também fechou. Aqui os assuntos eram místicos, esotérios, terapias de todo gênero, e o número predominante de atores eram mulheres. Na Seridó, o ambiente era diferente: intelectualismo puro, filosofia, política, teatro, poesia. Aqui predominavam os homens, com rara presença feminina.

Em nenhum dos dois cenários houve alguma vez referência à mulher que roubava livros, mas eu a pressenti exatamente quando me dei conta de que todo homem tem dentro de si duas “personalidades”, os famosos opostos yin e yang, correspondentes aos princípios feminino e masculino, respectivamente, presentes em todas as manifestações do universo.

Ocorreu-me imaginar, contudo, tratar-se a mulher de uma musa inspiradora, não de uma ladra de livros. Ela não precisa de livros porque os sabe por ter existido nas mentes mais brilhantes e criativas do planeta, de Cervantes a Dante; de Sheakspeare a Camões; dos dramaturgos, dos poetas, dos grandes pensadores, que mudaram o rumo da cultura ocidental.

Não é que ela veio visitar-me esta semana? Apareceu em casa (no sonho diferente do que a da realidade) e pôs-se a verificar e a manusear exemplares que catava na prateleira. Falava com suavidade, mas não ouvia nenhuma de suas palavras. Somente era possível captar o sentido oculto – exortava a sabedoria. Deixe-os (os livros) de lado, por enquanto, queria me sugerir? Escolheu alguns, deixou de lado, e depois de uma elegante conversa erudita, desapareceu. Por que terá levado aqueles livros? Mas, quais eram eles, na realidade? Por que aqueles e não outros, entre milhares? Mas não há garantia alguma que os tenha carregado consigo. Quem interpretaria melhor esse sonho: Freud ou Yung? (C.R.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.