PERSONA – AOS 112 ANOS, EX-ESCRAVO, PARANÁ REVELA SEGREDOS DE UMA LONGA VIDA
“A felicidade não é dinheiro, não é propriedade, não é um bem que se adquire. Não é nada disso! Falo isso por experiência própria. Quando tinha dinheiro, propriedades, não era feliz. Hoje sou feliz, morando com minha filha e meu genro.”
São palavras de Olavo Queiroz de Souza. Em abril deste ano ele completou 112 anos. Ele mora em Ibiúna desde 1935 quando chegou de Jacarezinho, no norte do Paraná. Veio sozinho e deixou para trás 11 irmãos e irmãs, alguns já tinham falecido. Ao todo eram 23. Tomou essa decisão de se aventurar pelo mundo depois de observar que sua família de escravos, como ele, vivia em extrema pobreza numa plantação de café. Era uma forma de se tornar um homem livre.
Evitava, assim, ser mais uma boca para alimentar por seu pai, Oscar Queiroz de Souza e a mãe, Palmyra Joana da Conceição.
Logo depois de chegar e estabelecer os primeiros contatos em busca de um emprego, fosse qual fosse, disse que era paranaense. Alguns entenderam que ele era estrangeiro, pois desconheciam o estado em que ele tinha nascido. Por isso, ficou conhecido como Paraná, hoje um personagem muito conhecido em Ibiúna.
Deixado por um caminhão que o trouxe na carroçaria depois de andar a pé 35 quilômetros, chegou em um lugarejo que chamavam Panema, em Ourinhos, uma referência ao rio Paranapanema [as pessoas locais simplesmente faziam uma redução do topônomo]. A carona conseguiu em Marília que, na época, “se chamava Alto do Cafezal”. Aos 25 anos, desembarcou na beira de uma estrada acanhada de terra, quase uma trilha, onde hoje se encontra o Supermercado São Roque, perto da Capelinha, no centro da cidade.
Paraná desceu e sentou-se ao lado de uma pilha de carvão que havia na beira da estradinha. “Fiquei ali, sentado, pensando.”
Vitrine online – Em que o senhor pensava?
Paraná – Fiquei pensando em Deus, pedindo a Deus. Senhor tenho muita necessidade, cuida de mim, ilumina meu caminho. Se eu tiver alguma coisa vou repartir com alguém que precisa.

A memória e a lucidez do senhor Paraná são prodigiosas. Suas respostas são entremeadas com risos contagiantes. Consegue se lembrar nominalmente, com raríssimas exceções, de todas as pessoas que conheceu, parentes ou não. Lembra-se de fatos ocorridos quando tinha três anos, quando foi vendido, com a família, da Fazenda Sabino para a Fazenda do Costa Júnior em 1913. Nenhum deles tinham registro porque não existia cartório em Jacarezinho naquela época.
A riqueza de pormenores com que lembra dos fatos é impressionante. Na verdade, o entrevistador a certa altura nota que sua história é merecedora de um livro.
Os escravos sofriam toda sorte de torturas aplicadas impiedosamente, desde chicotes com tiras de couro de boi e outros instrumentos que, não raro, provocavam a morte dos escravos. Isso acontecia em todo o Brasil.
Paraná – Você conhece roda d’água?
Vitrine online – Sim. Serve para canalizar a água para plantações.
Paraná – Mas a roda d’água servia também para punir, às vezes até a morte, um escravo. A pessoa era amarrada entre os raios de madeira da roda com uma tala de couro curtido que, conforme a roda girava, o corpo ia sofrendo golpes contínuos.
Paraná – Tinha um parente meu, um preto muito bonito, irmão do meu pai. Pois ele foi preso a uma roda d’água. Quando foi retirado no dia seguinte, os ossos de suas costas estavam expostos. Ele morreu.
Vitrine online – Por que ele sofreu esse castigo.
Paraná – A mulher do fazendeiro se engraçou com ele…
Lembranças como essa marcaram a vida do senhor Paraná, mas ele nunca se deixou levar pelas adversidades da vida.
Um dia chegou lá um soldado fardado. Paraná tinha dezessete anos e se encantou e decidiu que queria ser soldado do exército também. Nessa ocasião já havia um pequeno escritório que fazia anotações e registros.

Lá vai ele a pé até a pequena cidade de Jacarezinho. Conversa com o escriturário. Diz que quer um registro porque pretende se inscrever no exército. Resposta: cadê seu pai? Sem seu pai não tem registro. O jovem Olavo insiste até que recebe apoio de um outro escriturário. Faz o registro dele. Foi feito, mas com uma condição: Só registro se for com a data de hoje. E assim: Olavo passou a existir a partir de 14 de maio de 1927, como consta em sua identidade, quando, de fato, nasceu em no dia 19 de abril de 1910.
Olavo não se tornou um soldado e daí resolveu vir para São Paulo, “um sonho de muitos brasileiros”, até chegar em Ibiúna.
Em Ibiúna, “era só mato e trilhas”, viu um carro de boi carregado de carvão.
“Sabe onde tem serviço?” Acabou indo para o “fundão do Verava”. Arranjou um emprego com Antônio Aro Cano, depois a carvoaria passou para José Miguel. “Fiquei lá muito tempo. Dormia deitado em sacos de carvão.”
O passo seguinte mudaria o destino de sua vida. O dr. José Batista de Carvalho, que tinha negócios em São Paulo, ajeitou vinte alqueires em Ibiúna. Ele já tinha ouvido sobre Paraná e pediu a alguém: “Traz esse neguinho aqui, pois dizem que ele é bão.”
Paraná aceitou o emprego e ganhou “um quartinho” para dormir. Com o tempo foi ganhando confiança da família. “Eu comia feijão com carne seca [salgada] para economizar no sal”.
Passou a ser tratado como filho e ganhou espaço dentro da casa da família. Mas os negócios do dr. José Batista em São Paulo iam de mal a pior. “Eu não falava nada, mas percebia o que estava acontecendo.”
Paraná procurou o patrão: “Sei da sua situação e acho melhor eu arranjar um emprego na cidade.” Começou como ajudante de caminhão, depois motorista, de uma serraria, da Cooperativa Agrícola de Cotia. Nessa altura Paraná que estava morando numa pequena pensão, conseguiu comprar uma casa. E a ofereceu para o dr. José Batista, seu ex-patrão, morar ali.
Mais tarde foi trabalhar como taxista com ponto na avenida Henrique Schaumann, em São Paulo. Conseguiu comprar um sítio no bairro do Curral, denominado Sítio do Sossego. Sua condição financeira era muito boa.
Em 1950, abriu a primeira casa de móveis usados de Ibiúna e depois novos: Casa de Móveis Paraná, na rua Pinduca Soares; tinha também outro comércio na rua XV de Novembro. “Cheguei a ter oito carros zero-quilômetro.”
Hoje vive tranquilamente no seu sítio onde mora com a filha Geiza e o genro Jorge. Geiza é professora de música e Débora, outra filha, é artesã.
Aos 112 anos, o longevo Paraná dirige, sai a andar pela cidade e, devagar, lê a Bíblia, que fica ao seu lado sobre uma mesinha na varanda da casa. Dos seus 23 irmãos e irmãs, somente três estão vivos: Ninico, Emília e Leonora.
Na casa aonde Paraná foi morar, e ser aceito como um filho, moravam o dr. José Batista, sua mulher, sua sogra e a cunhada, Maria do Carmo. Os três primeiros morreram. Ficaram na casa apenas a cunhada e Paraná. Os vizinhos começaram a fazer comentários suspeitos sobre ambos.
Então, Paraná um dia disse a Maria do Carmo se era gosto dela casar com ele. Pedido foi aceito. Ambos tiveram duas filhas. Maria do Carmo morreu há poucos meses aos noventa anos.
Vitrine online – Existe algum segredo para contar 112 anos?
Paraná come de tudo, mas o faz lentamente, não fuma e não bebe.
Paraná – É preciso andar direito, não mentir, confiar em Deus com firmeza, sempre se movimentar, levantar cedo e dormir cedo. E namorar, mas com todo o respeito.
