CRÔNICA – “QUANDO AS FLORES VIEREM, TUDO FICARÁ BEM”

Antes de dormir, como de hábito, comecei a ler à luz do abajur e minha mulher, deitada ao meu lado, chorava de saudade. Lágrimas pungentes, profundas, originadas no dolorido sentimento de mãe, que sempre dedicou sua vida, seu corpo e sua alma aos filhos e ao marido.

Contagiado, veio-me à consciência uma frase que ouvi tantas vezes que resolveu habitar minha mente. “O tempo ajudará a amenizar essa dor.”

Mas essa fala não me pertence e sem saber o que fazer com ela, deixei-a de lado respeitosamente e aí se abriu dentro de mim a imagem do jardim dedicado à nossa filha. Simples e verdadeiro como ela.

Ninguém escapa dessa dor e ela o seguirá pelo resto de sua vida e não há palavras, nem remédios, nem religião, nem ciência que possa removê-la de si. Essa dor é a dor de um amor que agora é vivido somente como lembranças de um ser maravilhoso, pleno de luz, inteligente e apaixonada pelo filho de oito anos e pelas crianças das escolas onde trabalhou, com a magnífica expressão de sua personalidade intensa, e das meninas com síndrome de Down que cuidou com tanto carinho e sacrifício, até mesmo quando mal podia caminhar.

Então, percebi que essa dor estacionada no peito, na forma de sentimento de falta, de ausência, de vazio, passou a fazer parte da minha vida no dia 21 de novembro de 2011, exatamente às três horas e vinte e um minutos, quando ela partiu diante de mim na cama de uma UTI, ao dar o último suspiro com os seus olhinhos saltados, tirada à força e reagindo até o último instante porque queria viver e criar seu filho.

Nesse momento desabei para sempre porque a vida perdeu a graça, a luz, e a presença da pessoa mais autêntica e emocionante e amorosa que já conheci. Recordo que a esperei nascer até ver a luz cor-de-rosa se acender na lanchonete da Maternidade São Paulo, que já não existe mais.

Nesse tempo corrido, lembrei o que disse poeta Fernando Pessoa: que Deus não existe, porque se existisse viria falar com ele em seu quarto. Mas ele escreveu sobre Jesus menino com doçura e terno carinho. O Deus, não o inventado pelo homem, é um mistério indecifrável e a fé, por si só, pode levar a lugar nenhum ou à ilusão de que a tendo como pensamento possamos nos sentir mais seguros num mundo onde tudo é transitório e nada é para sempre.

Passei a entender que a verdade mora no silêncio do coração, em seu estado mais puro e é aí que nós encontramos a dor que sentimos a cada instante e nos faz tremer por dentro, mesmo quando estamos diante do mais belo cenário da natureza. Prazer e dor fazem parte do mundo, assim como os opostos, como dia e noite, frio e quente, alegria e tristeza, vida e morte, lógica e absurdo.

“Viver é perigoso”, dissera-nos a certa altura, com dúvida do diagnóstico, o conhecido Dr. Drauzio Varella. Essa frase é o título de um livro de um filósofo brasileiro. Ainda bem que existe a filosofia que surgiu para tratar das profundezas da alma humana que é diferente da matéria, que tem seus próprios segredos, como as artimanhas da biologia que desafiam e limitam a atuação da ciência médica e dos médicos.

Mas nem a filosofia e tampouco a psicologia removem essa dor de dentro de nós porque ela passa a fazer parte da nossa vida, porque o amor não acaba e, por isso, nossa filha vive dentro de nós mãe, pai, irmão, marido, tios, primos, amigos, avó e tanta gente que ela amou, nas flores do seu jardim, no brilho do sol, nas nuvens, no céu azul, nas crianças que ela tanto amou, como o seu filho que herdou sua luz e inteligência e que é nossa fonte de alegria junto com sua priminha do coração. (C.R.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.