O DICIONÁRIO SUMIU? – ‘CAUMA’, NÓIS VAI ‘EXPRICAR’

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Provavelmente indignado com o que lê nas redes sociais, um internauta postou a seguinte mensagem: “Gente vamos melhorar o português? Não querendo desfazer de ninguém, muito pelo contrário. Alguns erros de concordância, acentuação ou conjugação verbal, etc., são aceitáveis, agora escrever ‘cauma’, em vez de calma;  ‘cem’ em lugar de sem; ‘expricar’, em vez de explicar; ‘vrido’, em vez de vidro”…e emendou um palavrão muito comum: é f..

De fato, esses e outros erros grosseiros de escrita são muito comuns, infelizmente, e refletem uma grave situação cultural da população.

Falar e escrever errado está diretamente relacionado com a educação recebida ou não pelas pessoas e é um problema mais sério do que alguns imaginam, pois vivemos no mundo em que as palavras são fundamentais e decisivas em todas as formas de relacionamentos.

Há por trás desse fenômeno uma ideologia bem antiga de submissão, isto é, o analfabetismo funcional total ou parcial fez historicamente parte da dominação dos povos pelos poderosos durante muitos séculos e ainda faz parte de largas camadas da população ao redor do mundo, pelo mesmo motivo. Os poderosos precisam que as pessoas pensem de menos, para manter suas prerrogativas e domínios.

Como o pensamento humano é formado por palavras, quanto menor for o repertório [estoque de conhecimento de palavras] mais dificuldades as pessoas têm de formular pensamentos, avaliar e interpretar situações e informações. Ou seja: o poder de atuação dos seres humanos se realiza por meio de palavras e quanto mais ‘pobre’, quanto menos palavras souber, mais dificuldades terão.

As palavras são signos [sinais] que representam fatos, pensamentos, sentimentos, situações, objetos, que podem ser descritos, narrados ou dissertados. Traduzindo: podemos descrever o que vemos, contar histórias ou defender nossos pontos de vista ou opinião de forma inteligente e coerente. Essa possibilidade fica muito restrita, ou mesmo inexistente, para casos de extrema ignorância verbal.

Falou-se ou se fala menos acentuadamente sobre a inclusão tecnológica ou acesso ao uso da informática e isso é de fato relevante porque, como se verifica claramente, a comunicação via internet se tornou uma tecnologia social que está transformando aceleradamente as relações sociais, econômicas e o próprio comportamento das pessoas. Nesse mundo, o conhecimento das palavras se torna ainda mais exigente.

O que se observa é que a maioria absoluta das pessoas têm relações extremamente superficiais com as palavras. Como podem fazer uso correto do que desconhecem como significados e significantes? Nós somos conhecidos pelo nosso corpo, rosto, gestos, etc., mas nos tornamos pessoas diante dos outros pelo que pensamos e dizemos. Os homens são aquilo que falam…ou escrevem.

Nós formamos impressões imediatas dos outros pela suas fisionomias, expressões, roupas que vestem, como se movimentam, mas a maior das impressões são transmitidas por meio das palavras. Com poucas palavras temos extrema dificuldade de interpretar e fazer parte do mundo. É nossa linguagem que estabelece nosso modo de viver.

A palavra ‘cauma’, em vez de calma, ou ‘expricar”, em vez de explicar, não ajudam ninguém a ficar calmo e tampouco explica. Calma significa ‘ficar com a alma’, ou seja, ser autêntico, si mesmo, com a própria essência espiritual. Explicar significa ‘tornar claro ou inteligível’, que está obscuro ou não é compreendido.

Tem uma música, já antiga e divertida, que diz: “Mas tu tá comendo vrido, fiinho?” E o filho responde: “Não, pai, eu tô chupando é preda [gelo] d’água.”

Uma pessoa que usa bem as palavras pode ser uma pessoa melhor exatamente porque são elas que nos tornam o que somos e o que queremos ser. (Carlos Rossini)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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