A vida como ela é

O título deste artigo é uma reminiscência aos temas que inspiravam o dramaturgo Nelson Rodrigues, na coluna diária que assinava nos jornais. Tive o privilégio de assistir ao seu lado à apresentação reservada de sua peça A Falecida, no Teatro do Sesi, na Avenida Paulista, em São Paulo. Estávamos ali, sua irmã, uma enfermeira, que lhe dava comprimidos, pois seu coração já vinha fraquejando, uma jornalista do Jornal da Tarde, além de mim.

Lembro-me dele porque lera a notícia de que magistrados de uma das câmaras cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acabavam de condenar uma clínica perinatal, no bairro de Laranjeiras, a indenizar em R$ 10 mil os pais de uma menina prematura, que se separaram quando foi revelado o tipo sanguíneo da menina.

Resumindo: a clínica havia fornecido ao casal o resultado do exame em que o tipo sanguíneo da menina era A, fator Rh positivo, enquanto o dos pais era sangue tipo O, fator Rh positivo. Houve a troca de um O por um A.

Resultado: o pai, um policial militar, concluiu que a menina não era sua filha, o que o terá levado a pensar o pior sobre o comportamento da mulher. A confirmação da paternidade viria somente dez meses depois, quando novos exames comprovaram um erro da clínica.

A defesa da clínica argumentou que a mãe do bebê havia sido advertida sobre a possibilidade de erro e que a teria orientado a refazer o exame. A mãe, no entanto, já separada, deixou de refazer os exames mais cedo por que se encontrava sem condições emocionais exatamente devido à separação do marido.

Numa audiência anterior, em primeira instância, outro juiz havia condenado a clínica a pagar R$ 20 mil. A clínica recorreu da sentença e teve a indenização reduzida pela metade.

Se estivesse vivo, Nelson Rodrigues poderia mais uma vez mostrar a vida como ela é na pequena paisagem do cotidiano. E poderia entrar fundo nas ameaças que rondam o amor entre um homem e uma mulher e o destino de uma família. Talvez enfatizasse que a química do verdadeiro amor jamais deixa margens à dúvida. Mas os acontecimentos podem contrariar aquilo que se vê.

Vale mencionar a insegurança do marido em relação à mulher com a qual compartilhava a cama, os suores, as dores, o banheiro, a comida e a invasão inadvertida em sua mente da primeira letra do alfabeto. Aliás, resultados errados não são tão incomuns, destruindo relações entre pessoas e entre pessoas e a vida, nos casos de doenças graves.

Os fatos são impiedosos e surpreendem pessoas que estão tocando a rotina do dia a dia. A clínica teve de pagar os R$ 10 mil aos pais da menina, mas quanto custaria indenizar o fim de uma convivência familiar, à qual se liga o futuro da menina? Era o que sugeria o dramaturgo em seus textos em torno da realidade crua: a vida é cenário de perplexidades em que se produzem muitas perguntas e poucas respostas tranquilizadoras.

No presente caso, o amor recebeu uma seta envenenada e esboroou-se como um castelo de areia na praia lambido pelo vaivém da água. Uma lição se insinua: acreditar mais no amor é preciso e menos dos testes de laboratórios. Em caso similar, refazer o exame, conversar serenamente, rejeitar a ignorância do primeiro momento, refletir e amadurecer com humana blandícia.

Então, que laços são esses que tornam um casal presa fácil de um equívoco laboratorial? Como as relações humanas se sujeitam tanto à falta transparência? Será que a vida como ela é ultrapassa a força do amor? Se a resposta for sim, torna-se necessário saber o que é o amor nestes tempos globais e de absurdos comportamentos como se o mundo todo estivesse se transformando em uma nau dos insensatos. (C.R.)

 

Carlos Rossini é jornalista e sociólogo. Atualmente ministra o seminário “Como lidar com pessoas e criar relacionamentos de sucesso”. Contato: 11 3735-1766 ou e-mail: vitrinesp@gmail.com

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.