SERÁ QUE VOU CATIVAR HELENA?

Ela mora atrás da cópia da pintura do célebre pintor renascentista floretino Sandro Boticelli criada entre os anos 1484 e 1486. A tela se chama Nascimento da deusa Vênus, conhecida como Afrodite na mitologia grega.

Trata-se de uma obra de arte extremamente ousada para a época. Mostra uma mulher nua saindo de uma concha. Na verdade a cópia que tenho em casa mostra apenas o busto da deusa com seus cabelos dourados esvoaçantes.

Com os olhos e o rosto inclinados para a direita sugere, para mim, alguém que está nas profundezas da própria essência.

Com a mão e o braço direito encobre os seios e a mão esquerda cobre a sua genitália.

Pois bem! Um dia, quando seguia da sala para a cozinha de casa a vi pela primeira vez, grudada na parede com suas sete patinhas.

Resolvi aproximar meu dedo o mais próximo dela, mas ela rapidamente correu para trás do quadro. Desde então tenho procurado manter contato com ela, aproximando a ponta do meu dedo cada vez mais perto de sua presa/cabeça. Aparentemente, às vezes, parece que ela permite que fique bem perto dela. Outro dia ela me surpreendeu. Quando a ponta do indicador chegou bem perto ela simplesmente deu um salto parecendo querer atacar-me, mas foi para o chão.

Tentei encontrá-la em vão. Pensei onde essa criatura terá se escondido? Tempos depois lá estava ela subindo na parede do lado oposto. Fiquei aliviado. Ela, afinal, estava bem!

Percebi que ela está crescendo e espero que antes que fique demasiada grande ela possa permitir que encoste a ponta do dedo em seu corpo invertebrado. Não sei se é um espécime venenoso.

Quero que ela saiba que não lhe tenho medo e aja da mesma forma comigo. Será que ela pode ser um petezinho? Ou será petezinha, não sei também se é macho ou fêmea.

Enquanto escrevo, a olho a distância. Ela está lá imóvel na parede. Quando me aproximei, vi outro espécime na mesma parede, uma baita aranha.

Na verdade, quem mora no mato acaba se acostumando com esses bichinhos. Desenvolvi uma tecnologia para removê-los para fora de casa sem lhes causar dano algum. Algumas são enormes, mas arranjei um jeito de pegá-las com uma fofa camada de papel higiênico.

Ia fazer isso com a grandona que esperta e rapidamente fugiu em direção à biblioteca e se refugiou por uma fresta lateral entre um balcão e a parede branca. Afinal, ela tem o direito de preservar a própria vida, como fazem os seres humanos quando se sentem diante do perigo.

Sobre a Helena, esse o nome que lhe atribui, estou tentando cativá-la com todo o respeito. Na verdade, quero brincar com ela. Será que vai topar?

Até lembrei-me o que escreveu Saint-Exupéry em 1943, no livro O Pequeno Príncipe: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. No meu caso, o verbo cativar aqui toma o significado de uma vontade de compreender o jeito de ser do outro, e não de aprisionar ou capturar ou escravizar.

Helena é um ser muito diferente de mim com suas sete perninhas, uma das quais parece estar presa em seu abdômen. Ela é ela e eu sou eu, mas seria muito legal se fôssemos mutuamente simpáticos. Será que ela sabe que podemos ser bons vizinhos? (C.R.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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