UMA DEDICATÓRIA

Minha relação com os livros é visceral, enraizada, íntima. Os tenho comigo, os mais antigos há décadas. Cuido deles com todo o respeito que merecem.

Tiro o pó das lombadas, das capas, com chumaços de algodão umedecidos com limpa móveis com fragrância de lavanda. Aprendi isso em uma livraria localizada na praça Vilaboim, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. Deixo a capa brilhando como o reflexo do sol em uma folha de araçá.

Também faço pequenas restaurações porque os livros envelhecem como nós e podem degradar porque sua origem é a celulose, um polímero natural que se encontra nas paredes celulares das árvores.

Há árvores que dão frutos, flores e aquelas que dão livros. Elas, portanto, dão alimentos para o corpo e para alma.

Os livros fazem amor com as pessoas quando desnudam as palavras diante do olhar dos leitores. Engravidam-nos de ideias e conhecimentos. Faz-nos despertar para a vida e nos oferecem caminhos para a liberdade.

Se você prometer manter em segredo, digo que, às vezes, de madrugada, quando o sono foge para um deserto cheio de pensamentos, vou ter com eles na biblioteca.

Olho para seus rostos, títulos, autores e recordo a imensa variedades de títulos e assuntos que perfilam nas prateleiras. Não raro, pego um deles, alguns estão ali há décadas, como se o visse pela primeira vez.

Então hoje, de modo fortuito, me vi cara a cara com “O Lobo da Estepe”, de Hermann Hesse. Na verdade tenho dois exemplares com mesmo título.

Mas este que tenho em minhas mãos, em particular, penetrou na minha retina como um raio, quando li a dedicatória. Estava escrito com uma letra notoriamente feminina:

“Carlos, guarde-o como lembrança de uma amizade. Maria G.” –2.12.68

Minha memória cambaia levou-me para o ponteiro do tempo parado há 57 anos.

Naturalmente, decifrei o significado do G. Trata-se de uma amiga queridíssima, colega de escola, uma linda representante da beleza italiana, jovem, que um dia me recebera em sua casa e onde me ofereceu um cacho de uvas. Bem, havia uma vibração amorosa muito especial pelo fato de estarmos ali, juntos.

Lembro-me claramente de seus cabelos negros, olhos brilhantes, pele clara suave como casca de pêssego e um sorriso espontâneo encantador. Como estará sua aparência hoje? Terá se casado? Filhos? Será que nos reconheceríamos mutuamente se nos víssemos na rua ou numa estação do metrô da avenida Paulista?

Sentou-se ao meu lado no sofá da sala, cruzou as pernas. Começamos a conversar. Não sei quanto tempo permanecemos ali, mas guardo a melhor lembrança desse encontro.

“Guarde-o como lembrança de uma amizade.”

Maria G., nunca mais nos vimos. Não sei de você, e certamente você não sabe de mim.

Agora vejo o valor de uma dedicatória com a passagem do tempo. Ela faz a gente recordar um relacionamento que deixou a marca de um gosto doce como mel silvestre.

Bendita lembrança! Peguei o livro o examinei atentamente. A capa estava se soltando na parte superior da lombada da primeira capa. Tive que fazer reparos também na entre página que estava se descolando. Fiz a recuperação começando pela limpeza com a flagrância de lavanda cuja planta e aroma são ligados ao amor.

Então, Maria G., esteja onde estiver, saiba que sua mensagem atravessou o tempo e chegou até mim e fez bem ao meu coração pelo sentimento de amizade, que é um dos modos mais importantes na arte de amar.

Quero agradecer a Herman Hesse, prêmio Nobel de literatura de 1946, que, ao escrever “O Lobo da Estepe”, sua obra-prima, lançado em 1927, serviu de carinhoso meio de comunicação para minha Amiga.

No prefácio do editor, lê-se, sobre o personagem-título do livro: “…desconheço o seu passado e a sua origem: conservo, entretanto de sua personalidade uma forte impressão e – cumpre-me declará-lo – bastante simpática…” (C.R.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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