ENSAIO – A MORTE DE UMA FORMIGA NA MANHÃ DE SEGUNDA-FEIRA

formigao

A morte que tanto nos amedronta não existe na Natureza. Ela faz parte do processo de transformação contínuo que acontece e contem absolutamente tudo em si mesma. Onde estávamos antes de nascer? Para onde vamos quando morremos? Bem, essas indagações fazem parte das grandes questões filosóficas irrespondíveis.

Mas, nesta manhã de segunda-feira, ia pegar a toalha de banho no varal quando, subitamente, vi um formigão no piso, numa extrema situação de perigo. Estava sendo impiedosamente atacado por um grupo de pequeníssimas formigas que hora aumentava, ora diminuía de quantidade, mas a torturavam com suas presas em forma de pinça.

Umas agrediam seus olhos, outras puxavam suas pernas, outras espicaçavam suas costas e o traseiro. De vez em quando apareciam mais formiguinhas de uma pequena fresta num azulejo do pilar, corriam de uma lado a outro frenéticas e se lançavam contra o desvalido formigão que tentava debilmente mover e libertar as pernas em vão.

A cena era de uma crueldade desnorteante. Tive o desejo de intervir e seria muito fácil afugentar as guerreiras. Bastava pegar o inseto num sofrimento atroz. Estava recebendo ferroadas, talvez doloridas e paralisantes. Mas fiquei observando de perto as cruéis regras do jogo da sobrevivência animal.

[Uma noite quando voltava para casa vi uma cena insólita para mim: um porco espinho de maior porte dominava outro ou outra, menor. Parei o carro sai e os dois animais estavam ali se engalfinhando, se é que esta palavra está correta, e resolvi ir embora para não atrapalhar o que imaginei ser uma cena de amor à luz do luar. No dia seguinte, quando saí de casa vi, contristado, o que sobrara daquele espetáculo: o bichinho menor estava morto e rodeado de muitos espinhos que se soltaram do seu corpo. Fique estupefato!]

Voltando às formigas, as reações do formigão iam minguando. Já não conseguia livrar suas pernas puxadas com força pelas atacantes. Era uma agonia explícita! E as pequenas feras já a deslocavam de um lado para o outro, como queriam. Só para dar uma ideia de proporção, a formiga atacada era pelo menos cinquenta vezes maior do que uma das formiguinhas.

Antes de sair para o trabalho, vi seu par de olhinhos brilhantes à luz do sol. A morte do formigão estava consumada e, agora, elas tratavam de enfiá-la em seu formigueiro construído na base do pilar e a dificuldade era empurrá-la para dentro, pois seu porte ultrapassava a pequena abertura. Mas elas conseguiram com a mesma determinação com que lhe deram combate sem tréguas, obedecendo leis  naturais ocultas que as fazem agir como agem.

Minhas relações com formigas são antigas. Quando menino e vivia mais próximo do chão do meu quintal brincava com elas e nem imaginava que aquelas pequenas construtoras, carregando grão a grão a terra que extraiam para criar seu hábitat subterrâneo fossem capazes de tanta maldade. Claro, as formigas de agora não são as formigas da minha infância.

A cena que assisti me fez lembrar o quanto nós, seres humanos, somos parecidos com os animais em nossas atitudes materiais, da mesma forma pelas leis básicas da sobrevivência. Matamos, até de forma bárbara, muitos animais que nos servem de alimentos. Tivemos antepassados, ainda que longínquos, canibais, e continuamos nos matando nas guerras, nos assaltos cometidos por bandidos e assassinos, e pensando e nos fazendo mal uns aos outros.

Talvez tenhamos pensado que o processo civilizatório nos tornariam melhores e isso de fato ocorreu até certa medida, mas estamos e estaremos longe de voltar ao paraíso em que ninguém precisasse se alimentar (matar) para viver. Essa é uma questão utópica, enquanto não se descobrem outros meios saciar nossa fome e o desejo de possuir, que evocam a nossa natureza animal. (C.R.)

 

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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