CARLOS ROSSINI ESCREVE – AS LINDAS MENINAS

livroTodos os fatos contados a seguir são rigorosamente verdadeiros. Descia uma rua movimentada de uma cidade da Grande São Paulo a caminho de um sebo. Já estava bem perto deste, quando uma senhora negra, na calçada, ofereceu-me um pequeno folheto. Apontou para uma porta que dava acesso a uma escada e disse-me: “Lá em cima tem lindas meninas.”

Atrevido perguntei e aí, como funciona elas saem com a gente, vão para o motel? Se você quiser pode ter relações lá em cima mesmo, tem lugar para isso. Agradeci e pus-me a caminho do sebo descendo a calçada. E, como invariavelmente faço, aproximei-me da seção de FILOSOFIA. Ali fui vendo se tinha novidade até cansar, peguei uma banqueta para ver os títulos nas duas últimas prateleiras de baixo. Nada feito. De pé, rastreei as partes altas, até bater os olhos no Hominescências, do filósofo francês Michel Serres.

Vi o nome de um dos tradutores: Edgard de Assis Carvalho. Ele tinha sido meu professor de Antropologia na PUC de São Paulo. Professor-doutor, estudou em Paris. Fiz uma pequena barganha e confesso que desta vez, até mesmo pela qualidade física do livro, fiz uma bela compra.

Serres inventou [neologizou] a palavra Hominescência para significar o surgimento de um novo homem no mundo e prevendo o começo de uma outra humanidade. O autor aponta o intervalo existente entre o homo terminator [destrutivo] e o homo universalis [este o novo homem: responsável por si mesmo e pelo mundo].

Pode ser que você, leitor, não curta filosofia como eu, por isso vou acrescentar apenas o seguinte: de acordo com a tese de Serres estamos agora vivendo o fim de um ciclo cultural. E aí está a grande esperança: há um espaço ético para o reequilíbrio ético na Terra, pondo um fim às guerras e o estabelecimento de uma cultura da paz.

Então esses novos [hominescentes] homens se tornarão responsáveis diretos pelo aparecimento de uma sociedade mundial solidária, “regeneradora da dignidade humana do planeta, nossa habitação comum, nossa Terra global”.

LINDAS MENINAS

Com o livro na mão ganho a calçada em sentido contrário e lá está a senhora negra entregando os folhetinhos promocionais das lindas meninas. Ela toma a iniciativa de perguntar-me se sou professor, o que confirmo. Seu filho, diz ela, também é professor, fez curso da Sociologia. E conta uma breve história de sua vida: seu marido “não prestava” e, por isso, despachou ele. Cuidou sozinha dos dois filhos e aparentava orgulho de ter formado um deles. “Pelo menos se ele tiver que ser preso [por ser negro, numa batida policial qualquer] terá direito a uma prisão especial porque têm curso superior”.

A senhora sente muito o preconceito? Sim. Se entra numa loja é perseguida pelo olhar dos seguranças, enquanto um branco passa sem mesmo chamar atenção. “Somos suspeitos pela nossa cor”, ela diz sem deixar de entregar os panfletinhos para os homens que passam por ali.

Ouço-a com todo respeito olhando por meio de seu rosto todos os seus ancestrais retirados à força da mama África. Ela sabe disso e do papel econômico realizado pelos negros no Brasil. Comenta isso com sabedoria e dignidade. Seu rosto, na verdade, era a África inteira diante de mim e a reverenciei solidário.

Precisava seguir meu caminho e brinquei com ela. Quem sabe da próxima vez eu suba a escada. Vem sim, você vai gostar das nossas lindas meninas. (C.R.)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.