NATAL DO TER OU DO SER?

Vivemos em uma sociedade em que o TER se tornou mais, infinitamente mais, importante do que o SER.

O Natal e o Ano-Novo são rituais de passagem que afetam profundamente o comportamento humano. No primeiro caso, não se trata tanto, como se imagina, de uma pura celebração simbólica do nascimento de Jesus, porque é essa data que se comemora, mas de um exagerado apelo ao consumismo compulsivo.

É claro, no entanto, que nem tudo está perdido. Nesse período de festas, nossos corações se tornam líricos com uma exuberante demonstração de bons sentimentos de uns pelos outros, ainda que hipocrisia possa habitar nossas mentes. Afinal, somos “demasiadamente humanos”.

Vivemos em uma sociedade, descontando milhões de despossuídos que não têm acesso nem mesmo ao básico do básico necessário para proverem suas necessidades alimentares, cuja maioria vive nas periferias dos centros urbanos rejeitada pelo fluxo do sistema econômico que pode ser tudo, menos justo.

Não é preciso abrir um rosário de dados lamentáveis. Basta saber que 49,6% da riqueza do país se encontra nas mãos de 1% que constituem as pessoas mais ricas. Entre estas, possivelmente, se encontravam os condutores de Porsches milionários que se enfileiraram na Marginal do Rio Pinheiros, em São Pulo, a caminho de Interlagos para assistir à corrida da Fórmula 1.

Para o sociólogo e escritor polonês Zygmunt Bauman [ele utilizou o conceito de “Modernidade Líquida”, como forma de explicar como se processam as relações sociais na atualidade], a tônica da sociedade atual é o ter. Quem não tem não existe ou, por outras palavras, está fora do sistema e também distante da posse dos objetos de desejo.

Mas é uma tarefa esquisita tentar imaginar que o ser das pessoas tenha deixado de existir e que se tenham perdido sonhos e sentimentos, porque seria aceitar a impossibilidade do amor como essência de nossas relações.

Que existem pessoas despojadas de quaisquer sentimentos isso é uma realidade constatável, mas são minoria na comunidade humana. Alguns, por seu turno, podem ter episódios de falta temporária de sentimentos.

Eis, no entanto, um exemplo simples quanto singelo, de que há fogo sob as cinzas da razão. Tenho visto postagens, cada vez mais frequentes com a aproximação do Natal, de uma imagem comovente. Elas dizem que é muito triste ver cadeiras vazias em torno da mesa da ceia natalina. São os lugares do entes que já partiram e que continuam sendo lembrados e amados, ou seja, eis aí um testemunho eloquente de nossa maravilhosa capacidade de amar; ou seja, de sermos seres que sentem e que agem também movidos por esses sentimentos que engrandecem a convivência inter-humanos e com a natureza mãe de todos.

O olhar de Bauman enxerga a modernidade líquida como movimento oceânico envolvendo amplitudes gigantescas, mas não existe algo como tudo é igual, todos são assim, porque o mundo é composto por personagens singulares com visões subjacentes únicas.

Felizmente, se de um lado existe a vitória da ilusão do pensamento do TER, o SER continua existindo dentro de nós, às vezes experimentando tremores involuntários, angústias e solidões. Que objeto é capaz de aplacar esse contexto? Muitas vezes, nenhum!

Então, é Natal, e como diz a poesia musical de Chico César:

“Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde ilumine e zele assim”

Que a luz nos proteja de perder aquilo que talvez seja o mais importante presente recebido do Criador: a capacidade de compartilhar sentimentos. (Carlos Rossini é editor de vitrine online)

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.

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