NUM CANTINHO DO BRASIL, SURPREENDENTEMENTE, TORNEI-ME UM CATABOSTA
Tem gente que vive procurando um sentido para a vida. E isso é muito bom e faz dessa gente pessoas especiais e sensíveis. Albert Camus concluiu que ela é um absurdo. Jacques Monod, prêmio Nobel de fisiologia e química em 1965, a considerou um “escândalo”, em seu dificílimo livro O acaso e a Necessidade, pois o que observou em seus estudos é que vida e morte, uma se alimenta da outra. Resumindo: a existência humana é uma m…
Moacyr Franco compôs música gravada pela roqueira Rita Lee chamada “Tudo Vira Bosta”. Imagina Rita, já faz tempo isso, com seu jeito de ser nada convencional entoando: “O prometido e não cumprido/E o programa do partido/Tudo vira bosta.” Este é apenas um trechinho da letra.
Mas há mais coisas cantadas: ovo frito, caviar, vinho branco, cachaça, filé mignon, salsicão, arroz, feijão, Mercedes e Fuscão, a patroa e o patrão, o salário e o tesão, prostituta e deputado, a virtude e o pecado, esse governo e o passado…tudo vira bosta, tudo vira pó.
Na gíria teatral quando se diz “muita merda” significa desejar boa sorte para os atores. Sonhar com bosta pode representar, segundo pesquisadores, prosperidade, bonança e fartura. Certa psicologia apregoa haver uma equivalência entre a bosta e o dinheiro. A bosta é o primeiro produto humano e também o primeiro presente dos filhos para os pais.
Mas por que esse assunto agora e aqui? O motivo é simples. Depois de exercer profissões digamos, mais para o lado perfumado da sociedade “normal”, me vejo diante de uma insólita e incrível função: catabosta. Deixo claro que de cães, que recolho no jardim todas as manhãs. Coisa que nunca havia feito na vida antes. O fato é que essa atividade está mudando a minha compreensão das coisas. Catando bosta já aprendi a ser humilde e disciplinado [cães produzem cocô em qualquer lugar se não tiverem recebido um treinamento específico]. Minha capacidade visual está cada vez mais atenta [é preciso encontrar um bolinhos esverdeados no meio de um vasto gramado]. Alguns animais têm preferência de lugar, embora nenhum compromisso de fidelidade absoluta. Podem fazer em outros lugares, sem prévio aviso.
Como o ser humano também é um animal que defeca e fisiologicamente a função é idêntica, fica claro o processo da alimentação que nos mantém vivos e o subproduto que é rejeitado. A consistência, a cor [embora possam variar dependendo do que entrou no organismo] são diferentes das obras humanas e dos animais.
É sabido que a bosta de muitos animais é valiosa para servir como combustível, adubo para a terra, sobretudo os estercos de galinhas. O esterco de cavalo [já vi isso] é utilizado para produção de cogumelos. Em plataformas que ficam em penumbras espalham-se o estrume que é molhado até atingir um ponto em que se semeia trigo que gera um fungo que vira o cogumelo que cresce rápido. Simples assim.
Como catar bosta exige muita concentração, torna-se naturalmente uma atividade terapêutica. A pessoa acaba pensando em nada, fixando-se só naquilo que está fazendo e fica longe dos problemas da violência que está tomando conta do Brasil, vergonhosamente, e sobretudo das autoridades públicas e dos políticos com seus rompantes de poder, glória e muita ambição. E o povo brasileiro continua na mesma e cada vez mais de saco cheio de tanta provação. Às vezes, quando paro para descansar um pouco, penso que seria um trabalho heróico e voluntarioso catar a bosta produzida pelos poderosos que agem como se fossem donos do País e dos cidadãos. Por que, se não sabem, como entoava Rita Lee com seu jeito irreverente, no fim tudo vira bosta. É possível que catar bosta possa se tornar uma profissão do futuro, porque sua produção política, em nossa versão da democracia, é cada vez maior e mais espalhada,