NA LOTÉRICA, O HOMEM SEMPRE FALA “ESTOU CHEIO DESSE SOFRIMENTO” E TODO MUNDO RI

 Toda vez que vou com meu pai até a lotérica vejo um homem muito engraçado. Ele é careca, chega no  guichê e, depois de receber um sorriso da moça, adquire um bolão da quina, uma megassena ou  loto  fácil; as vezes, só quina ou só loto fácil e diz “estou cheio desse sofrimento” e todo mundo ri. Acho  que ele  quer dizer que seu drama do dinheiro vai se transformar em comédia, porque ao ganhar uma  bolada das  grandes vai livrar-se de tudo que o faz sofrer: aluguel, prestação do carro, da televisão tela  plana, do  computador, do terreno, da casa própria, da  fatura da vivo, da conta do condomínio, da  energia  elétrica, dos remédios, do plano de saúde, da  mensalidade escolar, do empréstimo bancário,  do  cartão de crédito, das compras no supermercado, do IPTU, do ISS, das multas do trânsito, do seguro do carro e da casa, do dentista, da ração dos animais, da reforma ou ampliação da casa, do mecânico, do médico, do laboratório…e a lista continua.

Todo mundo ri e ele também ri, acha engraçado que todo mundo acha sua situação engraçada. Eu também me divirto muito com ele. Parece um palhaço que brinca com um assunto que mexe com todo mundo. Acho que no fundo ele diz o que as outras pessoas pensam mas não falam e é por isso que elas riem.

Bem o ritual é mais ou menos assim: ele chega, olha pra moça e diz solene “por favor verifique na maquininha o resultado do meu jogo, vou acompanhar daqui”. Até hoje o que apareceu escrito é “bilhete não premiado, não sorteado” ou pequenas fortunas de R$ 2,50. Um dia foi mais longe: R$ 90,00. Ele gostou muito e caiu na velha armadilha de investir todo esse ganho em novos jogos, ficou zerado de novo. Claro que, como a maioria, ele sempre tem a esperança de que “por que não?” a sorte lhe seja generosa, pelo menos uma vez [“aí, não vou querer nem saber, viverei em estado de aposentadoria, mas não vou parar, não, só vou fazer aquilo que quiser, sem dar satisfação pra ninguém, serei livre, enfim”].

Se vai ganhar ou não, não há como saber por antecipação, mas que ele muda o ambiente na lotérica, muda, porque as pessoas ficam ali nas filas esperando a vez e pensando em muitas coisas que nem sabem bem o que são. A maioria vai mesmo pagar contas. Todo mundo sisudo, sério, e o cara vem [tem um jeito aparentemente serião] e desmonta a cena. “Moça, já não posso esperar mais, você tem que me vender os bilhetes que vão ser premiados, os outros não me interessam. Raspadinha, não, obrigado, é um engodo, é mais difícil do que ganhar a megassena”.

Outro dia não deixou por menos, comprou seus jogos e se despediu assim: “Amanhã vou direto para a Caixa Econômica Federal buscar minha grana.” A moça, como sempre, riu e desejou, como sempre, boa sorte a ele. Eu gostaria muito que ele ganhasse, meu pai também.

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.