CLAUDINO PILETTI ESCREVE – CARTA A UM PRESO ACUSADO DE CORRUPÇÃO
“Estimado Senhor,
Ao ler, na Folha de S. Paulo (Poder A7) do dia 04 de julho de 2015, que é herdeiro e presidente da maior empreiteira do país e que, por suas atitudes na prisão, desperta “antipatia quase unânime” entre os policiais, resolvi escrever-lhe.
Se é inocente do que o acusam, peço mil desculpas e que desconsidere o teor desta carta. Mas, na hipótese de que seja culpado – o que, em última instância, só sua consciência poderá dizê-lo – espero que essas minhas considerações lhe sirvam de reflexão nos amargos dias de prisão.
Começo lembrando-o de que, mesmo a pior das cadeias, é refresco se comparada ao lugar onde o célebre poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), na sua famosa obra Divina Comédia, situa os corruptos. Situa-os na quinta fossa do oitavo círculo do Inferno. Ou, como vulgarmente se costuma dizer, no quinto dos infernos, onde estão imersos em piche fervente e, ao levantar a cabeça, demônios lhes disparam flechas.
Não sei se acredita em inferno. Talvez até acredite, mas pensa que é só para os outros. E, a impressão que se tem, é a de que corruptos só acreditam e seguem a “Lei de Gerson”, que proclama: “O importante é levar vantagem.” Ou, em outra versão, ” cada um por si e o inferno para todos.”
Mas, segundo alguns corruptos, esse negócio de inferno é conversa pra boi dormir. E a Divina Comédia é apenas uma obra literária, cujo inferno não passa de uma metáfora.
Metáfora ou não, acho o inferno um assunto sobre o qual discute quem quer e acredita quem tem juízo, pois, o bom senso nos diz que ele deve existir. É o que nos dizem, também, profetas, teólogos, historiadores da religião e o próprio Jesus Cristo. Mas, eles nos dizem, ao mesmo tempo, que ninguém irá para o inferno sem o merecer. E, ainda, que é o próprio ser humano que, no fundo, se coloca nessa situação ao, entre outras práticas, roubar. “Ninguém pode roubar sem que Deus depois dê um castigo merecido”, afirmou, em certa ocasião, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
Pelo visto, porém, na seção do inferno que Dante destina aos corruptos, não haverá brasileiros, pois, aqui, todos os acusados de corrupção se dizem inocentes. Assim, pelo andar da carruagem, lá só haverá suecos, finlandeses, noruegueses, etc . Aqui, ao se acreditar nos acusados, nunca houve e não há corrupção. As propaladas propinas, as inúmeras irregularidades, a remessa de dinheiro aos paraísos fiscais e outras mazelas, não passam de infundadas invenções da imprensa.
O que não é invenção da imprensa, porém, é que os acusados enriqueceram além da conta. Bem mais do que é possível através do trabalho honesto. Como a maioria deles já está numa idade provecta, a pergunta que não quer calar é a seguinte: O que adianta o dinheiro roubado, ser remetido ao paraíso se o seu remetente for para o inferno? Assim, outros aproveitarão e, ele, pagará.
Apesar das evidências, quase todos os acusados negam a culpa. Negar é um direito de todos. Mas, nas palavras de Cristo, condenado injustamente, “nada há de escondido que não venha à luz, nada de secreto que não se venha a saber” (Mateus 10,26) E, de acordo com Ele, um dia, todos terão que prestar contas pelos seus atos. Por isso, para evitar surpresas desagradáveis, o melhor mesmo é pensar um pouco no inferno antes de praticar os malfeitos mencionados pela presidente Dilma.
Sei que, só de ouvir o nome Dilma, uma penca de brasileiros exclamará: “O inferno existe e é aqui!” Ledo engano! Se, comparada ao inferno, a pior das cadeias é refresco, o nosso país, mesmo com suas mazelas, se comparado ao inferno, é água de coco geladinha numa paradisíaca praia em pleno verão tropical e na companhia da pessoa amada. Quanto ao inferno, mesmo que não seja todo aquele horror descrito por Dante, não é nenhum refresco ou água de coco gelada.
Mas, certamente, o inferno é uma “gelada” ou, segundo Georges Bernanos, “o inferno é o frio”. Não deve ser nada agradável ficar eternamente no frio infernal pensando nos inúmeros malfeitos praticados e já sem possibilidade de reparação. O pior de tudo, no entanto, é estar num lugar onde já não há esperança alguma. Não é à toa que Dante colocou, na entrada do inferno, a seguinte inscrição: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais.”
Bem diferente é a cadeia, de onde um habeas corpus ou uma decisão do Supremo Tribunal Federal podem libertá-lo. Afinal das contas, como diria o ex-presidente Lula, vocês, os acusados de corrupção, não são pessoas comuns. São a nata do empresariado nacional responsável por gigantescas obras, dentro e fora do país. A sua empreiteira, por exemplo, que é a maior de todas, construiu hidrelétricas, linhas de metrô, e rodovias em 11 países entre
1998 e 2014. Por isso, além de não ser uma pessoa comum, você é o primus inter pares, isto é, o primeiro entre os iguais. Nada a ver, portanto, com cadeia.
Cadeia é para pessoas comuns. É para esses coitados que não têm grana para pagar bons advogados, ajudar políticos em campanhas eleitorais e não contam com amigos influentes. Não é, certamente, o seu caso. Você deve ter dinheiro para pagar os melhores advogados. E, crente no princípio de que “é que se recebe”, nunca esquece dos amigos políticos. Sobretudo do ex-presidente Lula que, agora, além de lamentar a prisão do amigo, deve
estar, como se diz vulgarmente, com o cu na mão de medo que aconteça o mesmo com ele, pois, segundo alguns, motivos não faltam.
O que nos faltam são motivos para acreditar que – como diz o senso comum e reza a Constituição -, “todos são iguais perante a lei”. É que a história nos tem demonstrado o contrário: alguns sempre foram mais iguais que outros. Todos iguais mesmo, só em relação ao inferno, como nos ensinou Dante, que até quatro papas (Anastásio II, Nicolau III, Bonifácio VIII e Clemente V), considerados corruptos, ele colocou no inferno.
Mas, além de Dante, muitos outros falaram do inferno. O escritor francês Victor Hugo (1802 – 1885) comparou o inferno a uma “queda sem fim numa noite sem fundo”. Segundo ele, “o inferno está todo inteiro nessa palavra: solidão”. Além disso, afirmou que “o inferno é a ausência eterna.”
De acordo com o escritor Georges Bernanos (1888-1948), “o inferno é não mais amar.”
Há uma infinidade de outras afirmações sobre o inferno. As citadas, porém, são mais que suficientes para lhe servir de reflexão durante o tempo ocioso que, na cadeia, é abundante. Fora dela, quase não terá tempo, nem disposição para pensar num tema tão fora de moda quanto o inferno. Além disso, estará
sempre às voltas com grandes empreendimentos.
Em certa ocasião, o grande líder sul-africano Nelson Mandela, que ficou preso durante vinte e oito anos por defender o fim do Apartheid, disse que tinha saudade do tempo que passou na prisão porque, preso, tinha tempo para pensar. Acredito que, se nos dias de prisão pensar um pouco sobre o inferno e outras verdades fundamentais da vida humana, no futuro, à semelhança de Mandela, sentirá saudades dos dias de prisão.
Longe de mim a pretensão de lhe dar lição de moral. Sou apenas um professor de filosofia aposentado, mas que não aposentou a filosofia. A ela devo o ensinamento de que é desnecessário e inútil dar lição de moral, pois, cada ser humano traz a lei moral inscrita dentro de si. Isso é admirável, mas também, inquietante, como ensinou o filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804), que afirmou: “Duas coisas enchem o espírito de admiração e temores incessantes: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim.”
O problema é que, dentro de cada pessoa, além da lei moral viceja, qual erva daninha, “a lei de Gerson”. Esta, regada pela cobiça, sorrateiramente se desenvolve. Aquela, ressequida pelo medo, visivelmente definha.
Hoje, com raras exceções, as pessoas têm medo de falar de moral. Uma dessas exceções foi o ministro da Educação da França, Claude Allegre, que, em certa ocasião, afirmou: “Não tenho medo de falar de moral. A palavra ‘moral’ desapareceu do nosso vocabulário, como se fosse um nome que metesse medo.”
As pessoas têm medo, também, de falar de cobiça. E, no entanto, é ela que se esconde sob o manto de muitas ações apresentadas como sendo a salvação da lavoura. Ela se esconde, inclusive, sob o manto da ação de alguns revolucionários, como observou o escritor Victor Hugo: “Saber distinguir o movimento que vem das cobiças do movimento que vêm dos princípios,. combater um e secundar o outro está aí o gênio e a virtude dos grandes revolucionários.” Esta afirmação se aplica, também, a alguns de nossos grandes empresários e a diversos políticos que posam de revolucionários.
Sem pretender, com isso, diminuir seu sentimento de culpa e o desejo de reparação, lembro-o de que, infelizmente, corrupção e cobiça têm quase a idade da humanidade. Um exemplo, que, no momento, me ocorre, é o da Nau dos Insensatos, livro escrito em 1494, por Sebastian Brant (1457-1521). Nessa obra, ele denuncia as falhas e vícios da sociedade de seu tempo, critica as mazelas tanto da nobreza quanto do vulgo, não poupando Igreja, Justiça, universidades e outras instituições. Brant censura os excessos, a cobiça, a corrupção, a falta de escrúpulos, a perda da fé, etc.
Passados mais de quinhentos anos da época de Brant, pareceria lícito acreditar que, hoje, tais coisas já não ocorrem. Afinal das contas, a humanidade progrediu. Mas, como observou o historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975), “a tecnologia é o único campo da atividade humana em que houve progresso. O avanço do Paleolítico Inferior à tecnologia mecanizada foi intenso. Não houve avanço correspondente na sociabilidade humana.”
Hoje, as grandes empreiteiras estão muito além do Paleolítico Inferior e, também, do tempo das picaretas. Em busca de mais e mais produtividade elas passaram a contar com máquinas cada vez maiores e mais sofisticadas. No campo da sociabilidade e da moralidade, porém, parece que vocês, grandes empreiteiros, continuam no tempo das picaretas. E, isso, não é privilégio de vocês. Lembra que, em certa ocasião, o seu amigo e ex-presidente Lula afirmou que no Congresso havia 300 picaretas? Quem diria – e, há quem o diga – que, hoje, ele também é. Isso, só os mais chegados e Deus sabem.
Para que não me considere pessimista, digo-lhe que acredito na existência de políticos e empreiteiros com a intenção e o desejo de mudar. Só espero que realmente o façam, pois, como já disse alguém, o inferno está cheio de boas intenções e desejos. Foi para pedir-lhe que vá além de boas intenções e desejos que lhe escrevi. Mas, caso seja inocente, volto a lhe pedir mil desculpas e que desconsidere o teor desta.
Obrigado pela atenção.”
Claudino Piletti é professor-doutor em Pedagogia e autor de vários livros. Gaúcho de Bento Gonçalves, reside em Ibiúna há longa data com a família.