DIANTE DO ESPELHO, VOCÊ VÊ O FEIO OU O BONITO?
Se eu fosse poderoso, só por alguns minutos, sancionava um decreto tornando obrigatório, rigorosamente, que todos os brasileiros devessem ler pelo menos vinte vezes até os primeiros vintes anos de idade o livro Primeiras histórias, de João Guimarães Rosa. E, daí para frente, reler o livro anualmente pelo menos três vezes. Somente assim seriam considerados brasileiros legítimos. As carteiras de identidade poderiam continuar valendo, mas seriam consideradas de menor importância constitucional.
Todos os anos haveria uma prova, como eleição, obrigatória, de leitura de Primeiras estórias e o propósito seria incentivar ao máximo que o livro todo fosse memorizado por inteiro. Pérolas criadas por João, da mais genuína literatura brasileira, serviriam para inspirar cafés filosóficos por todo o país. “A vida era o vento querendo apagar uma lamparina. O caminhar das sombras de uma pessoa imóvel.” Este poderia ser um tema para explanação e debate, por exemplo.
A fim de instigar os apreciadores do existencialismo, seria apresentada a imagem que abre um vasto cenário de significados. Eis como foi concebida no original: “A Moça adivinhava-a? Pedia água. A Moça trazia a água, vinha com nas duas mãos o copo cheio às beiras, sorrindo igual, sem deixar cair fora uma única gota – a gente pensava que ela devia ter nascido assim, com aquele copo de água pela borda, e conservá-lo até à hora de desnascer: dela nada se derramasse.”
No capítulo “O espelho” o brilhantismo do autor vai ao encontro de um dos maiores mistérios da alma humana: “Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por trás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha de verdade feio; quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro?”
Isso são ínfimos, mas poderosos trechos da genialidade de João que renovou a linguagem literária brasileira com seu jeito de traduzir o coloquialismo e a fala popular. E é exatamente nesse livro, um conjunto de contos ficcionais frutos da inspiração da realidade vivida e assistida, que transborda das páginas e atingem o leitor sensível, que é convidado a percorrer os meandros do mundo fantástico, psicológico, anedótico, satírico, com que o autor constrói personagens míticos em paisagens tipicamente brasileiras.
Ah, ia me esquecendo! Como, felizmente, não disponho do poder evocado no início, então cumpro, com satisfação e esperança, papel de sugerir sua leitura, como quem faz uma viagem pelo rio São Francisco e convive com suas populações ribeirinhas, com olhares atentos às peculiaridades descritivas dos personagens, à cada passagem do tempo e de lugares, marcados pelas relações entre eles e deles com o ambiente geográfico natural.
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Carlos Rossini é editor
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