LIÇÃO DE CASA – “VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ, VOCÊ TEM FOME DE QUÊ?…”

olharEntão queres que teu rosto fique oculto por uma máscara, como no teatro grego, e que sua voz seja alterada para que não te vejam e não te reconheçam na rua? Disseste-me que temes ser alvo de retaliação. Por parte de quem? O que te inquieta tanto a ponto de te transformar em um trânsfuga de ti mesmo? Ó tempora, ó mores! Como podes querer que algo que não aprovas mude, se tu mesmo permaneces prisioneiro do medo a ponto de precisar de disfarces?

Não sou juiz nem de ti e tampouco de mim e, por isso mesmo, não me sinto subjugado pela opinião de quem quer que seja, pois as opiniões são tão inconsistentes como as nuvens em dias de ventos rápidos. Depois, as pessoas ignoram a fonte das próprias palavras e confundem razão com emoção, estultícia com sabedoria. Além disso, pode haver tanta maldade gratuita atrás de uma simples frase.

Mas pelo que disseste, teu temor é maior, diz respeito à tua própria vida, se o teu rosto for reconhecido como sendo o autor das críticas que fazes ao governo, os ataques duros que lanças contra as injustiças, a corrupção e o cinismo que está no poder público de sua cidade. Então, como poderás viver assim, rodeado por ameaças possíveis e imaginárias?

Resolvi escrever porque, na verdade, essa preocupação não é um caso isolado. Percebo que essa pode ser a causa de receio que atinge a população local, que torna as pessoas cautelosas, medrosas, inseguras, silenciosas e objetos tementes do poder estabelecido, da opinião pública vista como juíza impiedosa e, enfim, do que os outros vão achar de você. Ou será, finalmente, que estejamos sofrendo de antropofobia, que significa medo de gente, das outras pessoas? Nos Estados Unidos, segundo pesquisa recente, esse tipo de fobia ocupa o terceiro lugar numa escala em que o medo da morte, naturalmente, ocupa a primeira posição.

Isto evoca a história da humanidade, feita de perigos, armadilhas, ataques, invasões, posses, saques, assassinatos, dominação, pilhagem… O Império Romano acabou, enfim, em parte por causa da corrupção e perversidade generalizadas e as vilanias que corroeram por dentro o poder imperial decadente e, em parte, mas decisivamente, por que houve um grande ataque inimigo de tropas bárbaras, que perceberam a fraqueza do adversário, como ocorre na cabeça do caçador diante do animal ferido.

Imagino que se todos pensarem dessa forma, a realidade crua e sufocante continuará sob a batuta da tirania inconsequente, que só consegue reger músicas tristes e funestas e, assim, afastar qualquer possibilidade da alegria do princípio do prazer, do riso, da felicidade. Porque os ditadores vivem e se alimentam do prazer que lhe causa o sofrimento dos outros. Isso é um fenômeno desafiador. Dostoiévsky terá dito: “O poder só existe quando faz sofrer.”

Mas, então, se agirmos todos assim, o que poderá restar de nós senão o caminho que seguimos em direção ao destino do qual ninguém escapa, nem mesmo os tiranos, para nos arrependermos quando nos sentirmos perto do fim e por ter deixado de fazer coisas que acreditávamos serem necessárias?

No entanto, não há novidade nessa atitude. Na história bíblica, Pilatos lavou as mãos diante da acusação feita a Jesus Cristo, enviado de Deus para redimir a humanidade. E o povo assistiu à passagem sofrida do Seu filho, rumo ao sacrifício na cruz no Gólgota, como se não tivesse poder algum para impedir um crime contra aquele que veio ao mundo e ensinava lições de amor e de liberdade dos pecados que cometemos por ignorância. Talvez o maior de todos seja a cegueira provocada pela luz.

Somos todos mortais, temos prazo de validade mais breve do que a arte e, decididamente, passamos pela vida sem na realidade viver, como se fôssemos robôs ou objetos e não sujeitos da nossa própria existência. É preciso arrebentar as correntes que aprisionam nossas mentes.

Navegar é preciso, viver também é preciso. Assim, pode-se começar com o riso contra a pretensa “seriedade” imposta pela ideologia dos poderosos, como Charlie Chaplin, Osho, Nietsche, Rubem Alves, Zorra Total, etc.

A festa de Babette, um jantar extraordinário, teve o mágico efeito de tornar pessoas “amargas, invejosas, feias, mesquinhas” em crianças alegres e felizes. Todas redescobriram os sentimentos que tinham sentido um dia, quando crianças livres e soltas no mundo, até serem aprisionadas lentamente em fios invisíveis das tradições que nos imobilizam em camisas-de-força.

Libertaram-se, pelo menos por um momento, do medo que era a única forma de sentir que conheciam no viver do dia a dia insosso, ao experimentarem os diferenciantes sabores proporcionados pela surpreendente culinária de Babette. Nesse jantar, ela gastou cada libra que ganhara na loteria para proporcionar prazer, um estado de graça, um poderoso antídoto contra a submissão medrosa que pode estar afetando nossas vidas sem que a percebamos com clareza.. (C.R.)

 

 

 

Carlos Rossini

Carlos Rossini é jornalista, sociólogo, escritor e professor universitário, tendo sido professor de jornalismo por vinte anos. Trabalhou em veículos de comunicação nas funções de repórter, redator, editor, articulista e colaborador, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Diário Popular, entre outros. Ao transferir a revista vitrine, versão imprensa, de São Paulo para Ibiúna há alguns anos, iniciou uma nova experiência profissional, dedicando-se ao jornalismo regional, depois de cumprir uma trajetória bem-sucedida na grande imprensa brasileira. Seu primeiro livro A Coragem de Comunicar foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo no ano 2000, pela editora Madras.