CARLOS ROSSINI ESCREVE – É BOM ENSINO O QUE CAPACITA AS PESSOAS PARA A ABSTRAÇÃO
Se tivesse que sugerir uma forma de avaliar se um sistema educacional é bom, diria que talvez o melhor critério é reconhecer se ele estimula e capacita as pessoas para a arte da abstração. Simplificando, abstrair é representar mentalmente aspectos da realidade observada por meio dos sentidos, seja em relação a objetos ou fatos concretos. Assim, quanto maior for o desenvolvimento mental do indivíduo, maior sua capacidade abstrativa, ou seja, de se relacionar com o mundo que o cerca.
Como o principal instrumento da abstração é a linguagem, se conclui que as pessoas com escassez de repertório verbal [que conhecem poucas palavras e seus significados corretos] possivelmente terão menor capacidade abstrativa e talvez, como de fato deve acontecer, uma relação genérica e superficial com todas as coisas e fatos. A capacidade de conhecimento está diretamente associada à capacidade de abstrair [‘ter’ ideias de determinados aspectos da realidade]. Filósofos como Aristóteles e Tomás de Aquino consideravam a abstração como a origem de todo processo cognitivo [de aquisição de conhecimento].
Por exemplo, ao redigir este texto sei, por abstrair dados de experiências frequentes, que provocará baixo índice de leitura, porque os indivíduos se sentem mais atraídos comumente com descrições de dados objetivos, como mortes, acidentes de trânsito com mortos e feridos, crimes, escândalos, prisões; em suma fatos corriqueiros de fácil percepção, como uma partida de futebol, especialmente uma decisão de campeonato.
A propósito, as pessoas agem assim de modo mecânico e superficial, pois há riscos e desconfortos em todo esforço abstrato, pois se trata de uma atividade individual e solitária. Entre a pessoa e sua intimidade mental. Sem estar preparada intelectualmente para essa aventura, ela tende a se afastar de “cair” num possível abismo.
Aliás, ao batucar essas palavras no teclado do notebook, surgiu da memória a lembrança de um livro – O Acrobata Pede Desculpas e Cai – escrito em 1966 pelo jornalista e escritor gaúcho Fausto Wollf, que de alguma forma aborda o tema do qual estamos tratando aqui.
Em síntese, o autor conta uma história de sarcasmo, amargor e angústia que reflete essa condição humana da vida mental dupla que vivemos. O personagem central é um ser anônimo e o que lhe acontece vinte e quatro horas de sua vida.
A ideia é que embora o personagem seja livre, a vida o obriga a agir como um acrobata, obrigando-o a equilibrar-se na ‘corda bamba da existência’. Todavia, em desespero, acaba fracassando. O que se propõe é que o ‘acrobata’ não é senhor do seu destino. Ele não aceita, não se submete às obrigações nem aos deveres sociais, e tenta romper o cerco. Trata-se de um ser que quer viver, amar, ser livre, quer dinheiro para cuidar da mulher e do filho, mas quer uma vida a seu modo, como possivelmente é o desejo secreto de muita gente, sobretudo na adolescência.
Essa é uma abstração artística de uma pessoa real que começou a trabalhar aos catorze anos de idade como repórter policial e contínuo do jornal Diário de Porto Alegre. De família humilde, mudou-se para o Rio de Janeiro aos dezoito anos. No Rio, chegou a manter três colunas simultâneas, escrevendo sobre televisão no Jornal do Brasil, sobre teatro na Tribuna da Imprensa e sobre política no Diário da Noite. Suas opiniões polêmicas e independentes também começaram a aparecer na TV, com o Jornal de Vanguarda de Fernando Barbosa Lima a partir de 1963.
Em 1968, atingido pela censura do governo militar, Wollf exilou-se na Europa, onde passou dez anos, na Dinamarca e na Itália. Ainda no exílio, foi um dos editores de O Pasquim, além de diretor de teatro e professor de literatura nas universidades de Copenhague e Nápoles.
De volta ao Brasil, com a Anistia de 1978, trabalhou em jornais como O Globo e Jornal do Brasil. Em seguida, passou a dedicar-se somente à imprensa independente, em especial a O Pasquim. Apoiou Brizola em sua eleição para o governo do estado do Rio de Janeiro em 1982 e, a partir dessa experiência, organizou o volume “Rio de Janeiro, um Retrato: a Cidade Contada por seus Habitantes” (1985), considerado um dos mais completos retratos sociológicos da cidade. Morreu no Rio de Janeiro em 2008.
Voltando ao nosso tema principal, a falta de capacidade de abstração talvez seja um dos mais dramáticos problemas do ser humano no mundo conturbado em que vivemos. Sem dúvida, é um dos o maiores desafios para a melhoria da educação no Brasil.