CENAS [REAIS] EM UM PRONTO SOCORRO OU CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
O relato que se segue é resultado daquilo que meus olhos viram e meus ouvidos escutaram nas duas horas em que permaneci, a contragosto, no interior de um agitado pronto socorro municipal [sistema SUS] localizado ao lado e no início da Rodovia Raposo Tavares em São Paulo. Não vou fazer referência ao motivo que me levou a interromper abruptamente minha viagem de volta para Ibiúna e me obrigou a fazer um atalho e dirigir apressado para a porta de entrada de emergência, localizada em outra ala à do atendimento de rotina para diversas doenças, incluindo problemas respiratórios, pois uma nova onda da covid-19 promovida pela variante ômicron se espalha de modo explosivo pelo Brasil.
Antecipo, para aqueles que possam esperar uma saraivada de críticas ao mal atendimento hospitalar ao qual estão habituados, que isso não ocorrerá, pois nenhum motivo houve para formular alguma queixa ou alimentar um silencioso rancor por algum comportamento funcional desrespeitoso. Nada disso aconteceu. O atendimento foi rápido, preciso, e feito por uma equipe experiente em situações de emergência, embora tenha seu limite como se verificará pela ocorrência principal que resolvi relatar porque diz respeito à uma rotina de violência que assola não apenas a capital do maior estado brasileiro mas, enfim, todo o País assolado por dramas sociais que desembocam na tragédia envolvendo jovens e seus confrontos com a polícia em cenas do cotidiano como a que aconteceu na tarde deste sábado. Médicos e enfermeiros não realizam milagres, embora atuem como se isso fosse possível pela notável dedicação que observei e pela qual agradeci aos recepcionistas, enfermeiros e enfermeiras e ao médico do meu atendimento. Talvez deva usar a linguagem de um roteiro cinematográfico para facilitar a narrativa. O resto cabe a você leitor(a), se é que vai enfrentar o desafio de ler muito mais do que apenas o título e, a partir daí, concluir por conta própria e superficial o que de fato terá ocorrido no emaranhado de dúvidas que se manteve em mim porque, sem ter o dom da ubiquidade, não vi com meus próprios olhos a cena de um confronto ocorrido momentos antes no bairro do Morumbi onde, soube, por relatos indiretos, que três jovens dom idades em torno de 20 anos terão tido um confronto com policiais militares durante um assalto. Os três jovens foram baleados: um recebeu um tiro no meio do peito e os outros dois nas pernas, pois algemados eram levados por policiais de uma sala a outra e notoriamente mancando. Um deles chorou e me disseram que era porque seu amigo acabara de morrer, pois não resistira ao ferimento a bala. Muito jovem. Por isso, a certa altura, vi um homem também jovem falando ao telefone e chorando sem parar próximo a uma mulher que segurava na mão um capacete de motocicleta e igualmente vertia lágrimas. Supus, sem comprovação, que se tratava da mãe e de um parente do jovem morto.
CENA 1
Pego a Rodovia Raposo Tavares em direção a Ibiúna. Nesta altura, já havia decidido entrar no pronto socorro porque a pessoa que me acompanhava sofria fortes dores, pois, por um desses fatos tão inesperados quanto acidentais, acabara de fechar a porta do carro na ponta de seu dedo anular que, conforme revelou um raio-X havia se quebrado. O médico em pessoa fez um furo com uma agulha hipodérmica na unha para fazer o sangue vazar, receitou profenid, logo aplicado, e indicou um analgésico em caso de dor.
Mas, quando deixei a rodovia e peguei uma descida marginal para entrar na área do pronto socorro, duas ambulâncias de resgate do corpo de bombeiros com sirenes abertas acabavam de entrar e certamente pensei ‘caramba vamos ter problemas’ de atendimento, afinal a cena revelava uma situação de emergência. Logo vi os bombeiros carregarem a vítima coberta por uma manta térmica de alumínio em uma maca de socorro. Imediatamente entraram na sala de emergência e ali desaparecerem. Havia diversos policiais militares que se mostravam agitados. Mais tarde verifiquei que faziam parte da ocorrência, talvez uns dez ou quinze. Além da vítima em emergência havia dois outros rapazes feridos, algemados, que eles levavam de uma sala a outra para serem atendidos pelos médicos e enfermeiros. O ambiente estava duplamente agitado, pelos pacientes que aguardavam atendimento, alguns notoriamente com problemas respiratórios, sendo logo encaminhados para procedimentos rápidos e pela ocorrência policial.
CENA 2
Estava ali aguardando o que determinava a realidade do atendimento e vi que os profissionais da saúde se mostravam experientes e práticos, bastante calmos e precisos, incluindo o profissional do raio-X que logo fez seu serviço, entregou o pedido médico com o filme revelado.
Nesse momento de espera, a porta da emergência se entreabriu e pude, por alguns breves segundos, ver que o jovem vitimado por um tiro no peito estava sendo submetido a massagens cardíacas, pois, supus, estava em parada cardiorrespiratória. Vi que seu peito na altura do coração era comprimido com vigor mas, infelizmente, como vim a saber pouco tempo depois, o jovem tinha ido a óbito, como se diz no ambiente de emergência. Seu corpo foi removido dali com uma discrição inacreditável.
O que mais me impressionou foi a velocidade como o pessoal da limpeza removeu o sangue da maca e do chão. Minutos depois alguém que entrasse ali jamais poderia supor o que havia acontecido de modo dramático. A maca foi remontada para estar pronta para o próximo atendimento, pois a situação de um pronto socorro é naturalmente imprevisível. Uma luta contra o tempo. Cenas tristes ocorrem ali com uma frequência tormentosa. A equipe da emergência sabe se recompor por experiência e se manter em prontidão. E esses profissionais são como anjos, sobretudo para aqueles que vencem ali, devidamente assistidos, entram com intensos desconfortos psicofísicos e, mais tarde, saem recuperados dos sustos, das dores e dos medos. O ambiente de um pronto socorro, por si só, é motivo de intensas mudanças emocionais seja por parte dos pacientes quanto de seus familiares.
CENA 3 – FINAL
Esta cena não se compõe de fatos objetivos, como os relatados acima, mas de uma intensa atividade subjetiva, decorrente dos efeitos dos fatos observados. O lugar, um pronto socorro, com suas portas de entrada, atendentes na recepção (de rotina e de emergência), os personagens que surgem do nada, pacientes trazidos por familiares, vizinhos, em carros de policiais ou de bombeiros, ambulâncias. Trata-se de um lugar mágico, de um ponto de vista da capacidade humana de lidar com situações inesperadas e prementes.
No caso que mais nos chamou a atenção estão envolvidos, além obviamente dos profissionais da saúde, cidadãos, houve um conflito entre três jovens – por que eles não estariam curtindo uma tarde calma com seus familiares, ou com as suas namoradas, ou participando de uma partida de futebol, ou… Por que tiveram esse trágico encontro com vários policiais de serviço e pronto para fazer cumprir as funções para as quais foram treinados?
São, uns e outros, faces da mesma moeda e integrantes de uma sociedade muito longe do que se poderia considerar de normalidade. Não! Aparentemente são vítimas de uma realidade impiedosa e promotora de violências que se reproduzem, assim como os personagens se reproduzem e se sucedem como os produtos que são repostos nas prateleiras dos supermercados. Tiram uns e entram outros, numa guerra sem fim e sem tempo para acabar. Os personagens, é lamentável dizer, não controlam seus papéis, mas são controlados por forças que estão muito além de suas competências culturais. São, me permitam escrever, vítimas de um sistema avassalador, injusto e tristemente verdadeiro. Essa realidade fria e triste às vezes podemos testemunhá-la por imperativos que não dependem de nossas vontades e sim dos acontecimentos que envolvem, mesmo que não os queiramos. E aos quais estamos sujeitos, ricos ou pobres, sábios ou ignorantes, jovens ou idosos. Em suma, porque é preciso finalizar essa história, todos os personagens envolvidos, quer queiram ou não, saibam ou não, terão o mesmo fim. O acerto de contas é individual e uma questão de tempo. (C.R.)